Menina ou menino? Conheça a Barbie sem gênero
Com a recém-lançada linha do brinquedo, a criança escolhe se vai brincar com boneca, boneco ou nenhum dos dois
Primeira boneca para crianças com cara e corpo de mulher adulta, a Barbie está completando 60 anos em pleno processo de reflexão sobre a própria identidade. Nascida alta, com longos cabelos loiros, olhos azuis, maquiagem e unhas pintadas, a boneca mais vendida no planeta adaptou-se pela primeira vez ao mundo que a rodeia nos anos 1980: embalada pelo movimento americano pelos direitos civis, a fabricante Mattel lançou a versão negra no cabelo e na pele (o corpinho proporcionalmente impossível permaneceu intocado). A partir dali, ela ganhou profissões, aderiu ao terninho, ao traje de astronauta, ao uniforme de policial, e foi se modernizando. Há três anos, estrearam a Barbie baixinha e a gordinha, em sete tons de pele. Agora, a linha chamada Mundo Criativo radicalizou: a(o) boneca(o) não tem gênero definido. A criança, de qualquer sexo, pode personalizar o brinquedo a seu gosto, como menina, menino ou nenhum dos dois.
Produtos unissex — termo cunhado pelo The New York Times em 1968, aplicado a calçados que podiam ser usados por homens e mulheres — são encontrados atualmente em diversos setores voltados para o chamado consumidor não binário, aquele que foge dos padrões de gênero vigentes. Marcas de maquiagem como Chanel e Maybelline usam homens nas suas campanhas. Gucci e Louis Vuitton puseram modelos masculinos nos desfiles femininos. A espanhola Zara e a holandesa C&A apostaram em coleções sem gênero definido — a maioria composta de jeans e moletom. Simulador eletrônico da vida real, o jogo The Sims, que já vendeu mais de 5 milhões de cópias, retirou a obrigatoriedade de o usuário definir seu avatar como homem ou mulher. “Existem dois fenômenos no lançamento da boneca de gênero neutro. Um é a customização, que agrada às crianças. O outro é a tentativa cada vez mais frequente de anular a classificação dos brinquedos como sendo de menino ou de menina”, explica Eduardo França, coordenador de MBA da Escola Superior de Propaganda e Marketing.
A Mattel garante que se baseou em pesquisas que comprovam que as crianças (ou, mais provavelmente, os pais delas) rejeitam cada vez mais os estereótipos definidos pelo gênero. “Tirar o rótulo faz com que o brinquedo seja para todos. Não há menino que não se divirta brincando com boneca”, diz a americana Monica Dreger, vice-presidente de tendências globais da marca. A Barbie sem gênero se assemelha a um pré-adolescente: não tem maquiagem, pelos faciais, seios ou ombros largos. Vem acompanhada de um kit que inclui perucas de cabelo comprido e curtinho e opções de roupa que vão de saias e vestidos a calças, bermudas e jaquetas. Lançada nos Estados Unidos, ainda não tem data para chegar ao Brasil.
A boneca sem gênero espelha um mundo em transformação, onde os velhos escaninhos da sexualidade estão cedendo lugar a classificações que tomam boa parte do alfabeto — e germinam sob o olhar mais ou menos tolerante da sociedade. Foi festejada em círculos de ativistas e por pais que apoiam a ideia — muito politicamente correta — de que a criança deve tomar contato desde cedo com a diversidade sexual, de forma a vê-la com naturalidade mais tarde. Mas também rendeu críticas ferozes. Em Brasília, o pastor e deputado federal Otoni de Paula (PSC-RJ) — o mesmo que advertiu que a cantora Anitta não é bom exemplo para as crianças — manifestou-se em prol dos pequenos indefesos. “Querem influenciar a primeira infância. É uma pilantragem”, vociferou na tribuna, no dia seguinte ao do lançamento.
Segundo dados da Associação Brasileira dos Fabricantes de Brinquedos (Abrinq), as bonecas e os bonecos representam quase 20% do mercado nacional, seguidos pelos carrinhos, com 17%. Presente exclusivamente das meninas até os anos 1970, a boneca ingressou no universo dos meninos na forma de um boneco macho até não poder mais: o Falcon, brutamontes de barba, músculos ressaltados, faca na mão e até uma cicatriz no rosto. Nos tempos atuais, ao contrário, manifestações explícitas de masculinidade (e feminilidade) são evitadas. Desde 2014 a gaúcha Xalingo não faz distinção de gênero na embalagem de seus produtos. “Não alteramos o brinquedo, mas as cores, a apresentação e a forma de divulgá-lo”, disse sua gerente de marketing, Tamara Campos. No site da marca, geladeiras, fogões e o jogo Brincando de Engenheiro trazem fotos de meninos e meninas na caixa. Árvores de Natal, preparem-se para mudanças.
Publicado em VEJA de 6 de outubro de 2019, edição nº 2655