‘Lovecraft Country’ usa terror para criar alegoria poderosa sobre racismo
Parceria de Jordan Peele com J.J. Abrams e Misha Green, a série da HBO traz assombrações da fantasia menos perturbadoras que as do mundo concreto
Com seu porte atlético e bolsa militar nas costas, Atticus Black (Jonathan Majors), veterano da Guerra da Coreia, viaja de ônibus da Flórida a Chicago. O ano é 1955 e a segregação racial é lei em vários estados americanos. Dividido entre brancos na frente e negros atrás, o veículo quebra no meio da estrada — e apenas os passageiros da primeira metade ganham carona até o destino. Atticus e uma senhora, os únicos de pele negra ali, seguem viagem a pé. No trajeto, ela questiona sobre o livro que ele tem nas mãos: Uma Princesa de Marte, escrito por Edgar Rice Burroughs em 1912. Trata-se da trama heroica sobre um veterano da guerra civil que é levado a outro planeta, explica Atticus, sem conseguir esconder que o protagonista é um ex-confederado. Ela torce o nariz: “Seu herói defendeu a escravidão. Não se coloca um ‘ex’ diante disso”. O rapaz sabe responder às críticas ao seu gosto literário: as páginas de pulp fiction que ele devora desde a infância são apinhadas não só de seres mágicos mas também de tipos racistas. “Histórias são como pessoas”, diz. “Não são perfeitas. Temos de ignorar os defeitos e aproveitar o que sobra.” A mesma lógica é explorada com criatividade e ousadia em Lovecraft Country, série que estreia na HBO no domingo 16, às 22 horas.
A aguardada parceria de Jordan Peele, diretor de filmes como Corra!, com J.J. Abrams, senhor da ficção científica em Hollywood, chega à TV em timing perfeito. A explosão dos protestos antirracistas nos Estados Unidos só reforça o significado da poderosa alegoria social contida em Lovecraft Country. A série também coroa um momento especial: a televisão e o streaming abrigam hoje uma safra de produções que captam a realidade dos negros com alta inspiração e voltagem política. Por décadas relegados às sitcoms pueris, atores, produtores e roteiristas negros tomam a dianteira em enredos que vão da distopia sobre um mundo neofascista trazida por Watchmen às idiossincrasias do cotidiano dos negros de classe média nas irônicas Black-ish e Atlanta.
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Como Lovecraft Country avisa já no título, a trama protagonizada por Atticus bebe das histórias do americano H.P. Lovecraft (1890-1937), nas quais seres gosmentos com tentáculos e dentes afiados aterrorizam humanos. O legado do escritor é incontestável: sua influência está no horripilante Alien, o Oitavo Passageiro (1979) ou na criatura mutante do sul-coreano Bong Joon-ho, em O Hospedeiro (2006). Mas Lovecraft converteu-se em persona non grata quando o evidente teor racista de suas obras se tornou intolerável — em um poema, ele diz que os negros seriam um amálgama entre brancos e monstros. Em vez de enterrá-lo no cemitério dos cancelados, a novata roteirista Misha Green e o oscarizado Peele — inspirados no livro Território Lovecraft, de Matt Ruff — subvertem, com brilho e sagacidade, o universo do autor clássico.
Na trama, uma família negra encara uma provação dupla: os horrores reais do supremacismo branco se entrelaçam intimamente às ameaças sobrenaturais. “Os monstros são metáforas que representam as experiências que vivemos no dia a dia”, disse Misha a VEJA. Atticus chega à vibrante porém racista Chicago para desvendar o sumiço do pai (Michael Kenneth Williams). Ele embarca com o tio George (Courtney B. Vance) e a amiga Letitia (Jurnee Smollett, um estouro em cena) em uma viagem pautada por uma única pista: a carta que o genitor deixou e que aponta para descobertas sobre os antepassados da mãe de Atticus em Ardham. A cidade fictícia é próxima ao célebre “Território Lovecraft” — região de Massachusetts, no nordeste dos Estados Unidos, onde o autor ambientava suas tramas. George, editor do Guia de Viagem do Negro Precavido — alusão ao Green Book da vida real, que recomendava restaurantes, hotéis e cidades amistosas a viajantes de pele negra —, possui um mapa ilustrado do país que é deveras didático. Seres fantasiosos indicam o nível de amabilidade das cidades: tocas de Hobbit, por exemplo, representam lugares seguros; ogros, vampiros, feiticeiros e fantasmas são um alerta para passar longe. O arrepio toma George (e o espectador) ao encarar um intimidador homem encapuzado de lanterna e foice na mão desenhado sobre a região de destino do trio.
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Nessa odisseia, o mundo real não dá trégua aos viajantes — mas eles não se abalam. Num trecho em que barulhos na floresta dão indícios de que algo de natureza sobrenatural pode estar à espreita, o verdadeiro medo vem de uma ameaça humana: o xerife de um condado onde há toque de recolher para negros ameaça enforcá-los, legalmente, caso não saiam da cidade até o pôr do sol. Eles têm nove minutos.
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A série trafega com dinamismo por cenários e subgêneros do terror. Surgirão no caminho de Atticus e companhia intempéries como casas mal-assombradas, artefatos mágicos a ser desvendados, maldições vigentes desde a escravidão e até um culto místico comandado pela ambígua e branquérrima Christina Braithwhite (Abbey Lee). Quando a acusam de pertencer à Ku Klux Klan, a loira diz que sua família está acima da ignóbil milícia racista. De fato, Christina é uma feiticeira movida por ambições que vão além do preconceito racial (mas nem por isso se revela menos temerária). Para sorte dos protagonistas, na ficção — especialmente aquela que tem um dedo de Jordan Peele — derrotar monstros é mais fácil que na vida real.
Publicado em VEJA de 19 de agosto de 2020, edição nº 2700
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