Último Mês: Veja por apenas 4,00/mês
Continua após publicidade

Livro sobre esposa de Dostoiévski resgata uma grande mulher injustiçada

Apesar de sua bem-sucedida carreira ao lado do marido famoso, Anna acabou relegada pela história

Por Raquel Carneiro Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 12h46 - Publicado em 18 set 2021, 08h00

Em calculada demonstração de insegurança, o escritor russo Fiódor Dostoiévski (1821-1881) quis saber a opinião da estenógrafa Anna Snítkina (1846-1918) sobre certa ideia para um próximo livro. “Ainda não sei o final, quero sua ajuda”, disse ele à profissional que o auxiliara a colocar no papel sua novela O Jogador (1866). O novo livro narraria a história de um artista de infância dura, órfão de pai, que padecia de epilepsia. Logo Anna entendera que não se tratava de ficção: era a biografia do próprio autor. Dostoiévski continuou. Enquanto a esposa desse tal artista estava à beira da morte, ele a traiu com outra e se culpava por isso. Afundado em tristeza e solidão, recuperou o ânimo ao conhecer uma jovem gentil e inteligente. Mas ele tem medo de ser rejeitado. O escritor então chega à questão final: “Se coloque no lugar dessa jovem. Imagine que o artista sou eu, que confessei meu amor por você e lhe pedi para ser minha mulher. O que você diria?”. Anna respondeu sem meias palavras ao pedido de casamento indireto: “Eu diria que te amo e te amarei a vida toda”. A jovem de 20 anos (ele tinha 44), que passou a atender por Anna Dostoyevskaia, mal sabia quanto a jura de amor eterno seria testada ao longo de um casamento que faz valer a expressão “na alegria e na tristeza”.

Os irmãos Karamázov

Especialista em literatura russa, o americano Andrew D. Kaufman narra em detalhes os catorze anos dessa união no livro The Gambler Wife: A True Story of Love, Risk, and the Woman Who Saved Dostoyevsky (A Esposa do Jogador: uma História de Amor, Risco e a Mulher que Salvou Dostoiévski, sem tradução no Brasil). “Se não fosse por Anna, dificilmente teríamos obras magníficas como Os Irmãos Karamázov e O Idiota”, disse Kaufman a VEJA. Segunda e última esposa do mestre da literatura russa, Anna foi uma notável editora e empreendedora. Ela não só ajudou Dostoiévski a se reerguer de uma terrível fase pessoal e financeira, causada pelo vício em jogos, como estabeleceu um padrão de publicação e distribuição de livros que mexeu com o mercado editorial e fez dela a primeira mulher russa a ter uma editora própria. Apesar de sua bem-sucedida carreira ao lado do marido famoso, Anna acabou relegada pela história. Autodeclarada “mulher emancipada”, termo corrente na Rússia de 1860 que equivaleria a “feminista” anos mais tarde, ela agora é resgatada das sombras pelo movimento do qual foi precursora.

The Gambler Wife

Eis que o revisionismo histórico contemporâneo se volta para uma nova e fascinante tarefa: fazer com que aquelas mulheres “por trás de grandes homens”, como diz o chavão, deem um passinho à frente para enfim receber a luz dos holofotes que merecem. Assim, além de Anna, a historiografia busca dar o devido valor a figuras como a escultora francesa Camille Claudel (1864-1943), amante de Auguste Rodin (1840-1917), que foi internada de forma compulsória em um hospital psiquiátrico pelo irmão ciumento, o escritor Paul Claudel (1868-1955) — e lá morreu esquecida. A obra de Camille ganhou um museu só dela na França, em 2017. E hoje especialistas apontam que várias esculturas da melhor fase de Rodin seriam uma colaboração com a amante — que acabou sem créditos, nem pagamento.

O idiota

Continua após a publicidade

O mesmo tipo de revisão iluminou Jo van Gogh-Bonger (1862-1925), esposa de Theo van Gogh (1857-1891), irmão do pintor holandês Vincent van Gogh (1853-1890). Biografada em Alles voor Vincent (Tudo por Vincent, sem edição no Brasil), de Hans Luijten, Jo é a resposta para a pergunta: como Van Gogh, que vendeu pouquíssimos quadros em vida, se tornou um fenômeno póstumo? Viúva, ela se viu sozinha com um bebê, 400 pinturas encalhadas do cunhado e cartas trocadas entre os irmãos. A correspondência lhe deu o estalo de marketing: a obra de Van Gogh não se resumia a telas — era a vigorosa expressão de uma alma em agonia. Numa época de crescente interesse pela psicologia, trabalhou duro para que o mercado de arte olhasse para Van Gogh por esse prisma. Resultado: hoje a obra do pós-­impressionista é compreendida à luz de seus terríveis transtornos mentais.

Anna também foi marqueteira talentosa. Recém-casada, percebeu que Dostoiévski estava no fundo do poço — e botou ordem na casa. Estipulou horários para a produção do marido, estudou o esquema das livrarias, reuniu os textos publicados de forma seriada em obras únicas e devolveu ao autor a estabilidade financeira que lhe garantiria tempo para tecer trabalhos como Os Irmãos Karamázov. Ao ficar viúva, recusou ofertas polpudas pelos direitos das obras e investiu em boxes de coletâneas — ação inédita que lhe renderia 5 milhões de dólares em valores atuais. Ela era uma mulher invisível, mas não brincava em serviço.

Publicado em VEJA de 22 de setembro de 2021, edição nº 2756

CLIQUE NAS IMAGENS ABAIXO PARA COMPRAR

Continua após a publicidade
Livro sobre esposa de Dostoiévski resgata uma grande mulher injustiçadaLivro sobre esposa de Dostoiévski resgata uma grande mulher injustiçada
Os irmãos Karamázov
Livro sobre esposa de Dostoiévski resgata uma grande mulher injustiçadaLivro sobre esposa de Dostoiévski resgata uma grande mulher injustiçada
The Gambler Wife
Continua após a publicidade
Livro sobre esposa de Dostoiévski resgata uma grande mulher injustiçadaLivro sobre esposa de Dostoiévski resgata uma grande mulher injustiçada
O idiota
logo-veja-amazon-loja
Continua após a publicidade

*A Editora Abril tem uma parceria com a Amazon, em que recebe uma porcentagem das vendas feitas por meio de seus sites. Isso não altera, de forma alguma, a avaliação realizada pela VEJA sobre os produtos ou serviços em questão, os quais os preços e estoque referem-se ao momento da publicação deste conteúdo.

Publicidade

Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

Veja e Vote.

A síntese sempre atualizada de tudo que acontece nas Eleições 2024.

OFERTA
VEJA E VOTE

Digital Veja e Vote
Digital Veja e Vote

Acesso ilimitado aos sites, apps, edições digitais e acervos de todas as marcas Abril

1 Mês por 4,00

Impressa + Digital
Impressa + Digital

Receba 4 Revistas no mês e tenha toda semana uma nova edição na sua casa (equivalente a 12,50 por revista)

a partir de 49,90/mês

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
*Pagamento único anual de R$118,80, equivalente a 9,90/mês.

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.