Kendrick Lamar: o artista que transformou o rap em alta literatura
O americano, que ganhou o Pulitzer, mostra no novo álbum por que é a maior voz de uma talentosa geração de poetas negros
Quando o rapper Kendrick Lamar lançou seu segundo álbum, Good Kid, M.A.A.D City, em 2012, a capa trazia uma fotografia já amarelada pelo tempo em que ele, aos 4 anos, surgia sentado no colo de um tio, ladeado por outros parentes. Na mesa de jantar, sua mamadeira repousava perto de uma garrafa de cerveja. A cena, registrada no início dos anos 1990 em Compton, nos arredores de Los Angeles, resume a infância pobre e violenta na qual ele se forjou: boa parte da família, inclusive o pai e os tios, integrava as perigosas gangues da cidade. Na época, as músicas que se ouviam nas ruas vinham de grupos de gangsta rap, cujas letras explícitas glorificavam as drogas e o crime. Para uma criança negra, tratava-se de um círculo vicioso difícil de superar. Mas logo Lamar revelou-se exímio escritor e aluno prodígio na escola — e encontrou no próprio rap sua porta de saída daquela realidade.
Em vez de seguir a onda e escrever letras sobre os temas em voga no gênero — como dinheiro, carrões e mulheres —, ele preferiu investir na qualidade delas. Em seus álbuns, o cantor exibe notável veia poética. A opção inusual trouxe a Lamar uma carreira que congrega sucesso e prestígio. Aos 34, ele já é dono de catorze Grammys. Mas o reconhecimento vai além da música. Ao lado de nomes como Childish Gambino (codinome do ator e músico Donald Glover) e Frank Ocean, ele lidera uma geração que está mudando a percepção sobre o rap: graças às letras elaboradas desses talentos, o ritmo marginalizado ganhou o status de uma forma de arte.
To Pimp a Butterfly [Disco de Vinil]
A prova maior disso veio em 2017, quando seu quarto disco, Damn, conquistou o prestigioso Prêmio Pulitzer na categoria de música. O feito entrou para a história: em mais de 100 anos de existência do Pulitzer, a premiação concedida pela Universidade Columbia nunca havia reconhecido a excelência literária das letras de rap — só jazz, ópera e música clássica tinham faturado a honraria até então. Na justificativa, os organizadores disseram que Lamar “capturava a complexidade da vida dos negros nos Estados Unidos”.
Good Kid, M.A.A.D City [Disco de Vinil]
Em seu novo trabalho, Mr. Morale and The Big Steppers, já disponível nos serviços de streaming, Lamar não faz concessões para ser pop: o álbum é introspectivo, altamente pessoal e influenciado pelo jazz. Na biográfica Mother | Sober, ele reflete sobre a desconfiança de que teria sido abusado por um tio na infância (o que desmente), lamenta suas explosões de masculinidade tóxica na relação atual com a esposa e revela que jamais teve vícios, além do sexo: “Nunca estive chapado, nunca estive bêbado / Nunca saí da minha mente, eu preciso de controle”.
Recluso, Lamar dá pouquíssimas entrevistas. Mas não abre mão do ativismo nas redes e nas músicas. Em 2015, a canção Alright, que fala sobre a brutalidade policial, foi adotada como hino do movimento Black Lives Matter. No clipe da nova The Heart Part 5, Lamar reflete sobre o bombardeio de opiniões favoráveis e negativas que enfrentou na carreira, enquanto seu rosto se transforma digitalmente no de negros famosos envolvidos em controvérsias, como Will Smith e O.J. Simpson. “Conforme fico um pouco mais velho / Percebo que a vida é sobre perspectivas / E a minha perspectiva pode ser diferente da sua”, canta. Versos sábios, sem dúvida, em tempos de intolerância.
Publicado em VEJA de 25 de maio de 2022, edição nº 2790
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