Joan Didion: as revelações íntimas do diário de uma autora mítica
Nos textos póstumos de 'Para John', a celebrada escritora americana expõe sua intimidade e investiga a si mesma em sessões com um terapeuta

“Por alguma razão, você cresceu esperando que o pior acontecesse, sem uma predisposição genética para a negação”, observou o psiquiatra Roger MacKinnon em uma de suas primeiras sessões com a ensaísta californiana Joan Didion (1934-2021). A constatação não seria novidade para qualquer admirador da autora, que fez do pessimismo e da franqueza seu ganha-pão. Com seu olhar incisivo, questionou a contracultura, investigou as entranhas de guerras, construiu heroínas fictícias de humor seco e se tornou símbolo de estilo e comportamento entre os anos 1960 e 1980, com seus óculos escuros, cigarro e uma expressão blasée. Na conversa com o terapeuta, porém, ela buscava esperança. O motivo era a intensificação do alcoolismo da filha adotiva, Quintana, então com 33 anos. Após seis consultas, Didion passou a relatar as conversas em cartas ao marido, o também escritor John Gregory Dunne (1932-2003). Encontradas numa gaveta após sua morte por complicações do Parkinson, em dezembro de 2021, aos 87 anos, as páginas escritas entre 1999 e janeiro de 2002 diluíram mistérios em torno da autora e se transformaram no livro póstumo Para John, já comercializado em pré-venda no país, antes do lançamento em 25 de agosto.
Didion começou a carreira jornalística em 1956, aos 21 anos, após ganhar um concurso para trabalhar na revista Vogue. Lançou o primeiro romance sete anos depois, e não parou de publicar ensaios. Alguns formam sua obra essencial O Álbum Branco (1979), que fez de Didion um sinônimo de Los Angeles ao sobrepor histórias de ativistas fundadores dos Panteras Negras, dos roqueiros do The Doors e até de criminosos como Linda Kasabian, da seita de Charles Manson. Também trabalhou em Hollywood e roteirizou longas como Os Viciados (1971) e Nasce Uma Estrela (1976). Os arredores em que vivia na época eram tão glamorosos que até o carpinteiro responsável pela reforma de sua casa estava fadado ao estrelato: era Harrison Ford, então na faixa dos 20 anos.

A terapia foi um ponto de virada. Com a ajuda de MacKinnon, Didion se viu mais aberta e voltou sua escrita para as próprias memórias quando o pior de fato aconteceu. Em dezembro de 2003, o marido, Dunne, morreu de infarto um dia após a internação de Quintana por pneumonia, começo de uma série de complicações de saúde que durariam até agosto de 2005, quando a filha também morreu, de um quadro de pancreatite aguda. Da primeira perda, surgiu o finalista do Pulitzer O Ano do Pensamento Mágico (2005) e, da segunda, Noites Azuis (2011).
Ambos os livros de memórias revitalizaram sua voz com sensibilidade ímpar, equilibrando visão poética e frieza analítica. Nenhum deles, porém, é dotado da mesma vulnerabilidade de Para John — sem firulas ou elipses. Nas cartas, Didion revela um câncer de mama que enfrentou sem contar a ninguém além do marido, a ponto de buscar tratamento em uma rua longínqua para fugir de conhecidos. Questionada pelo psicólogo, relembra quão distante era seu pai; pondera como pode ter falhado enquanto mãe; debate uma agressão cometida por um ex-parceiro; diz ter cogitado o divórcio após se casar, em 1964; e reflete sobre o impacto de duas outras mortes em sua família: a do cunhado Stephen, que cometeu suicídio em 1980, e a da sobrinha Dominique Dunne, morta pelo namorado em 1982, pouco tempo após estrelar Poltergeist. A transparência é tanta que se assemelha a uma invasão de privacidade, já que em vida ela nunca manifestou o desejo de expor as cartas. A publicação, porém, conta com um malabarismo justificativo em seu prefácio: se o objetivo dos textos era informar seu marido das sessões, Didion não teria escrito sobre a de 7 de junho de 2000, na qual ele esteve presente como terapia conjunta — uma deixa usada para inferir que ela teria outros leitores em mente.

Prolífica, Didion publicou cinco romances, cinco coletâneas de ensaios, três livros-reportagens e dois livros de memórias. Sua relação com a escrita começou aos 5 anos, quando a mãe sugeriu que, em vez de choramingar, canalizasse os sentimentos na folha de papel. “A primeira anotação é sobre uma mulher que acredita estar morrendo de frio em uma noite no Ártico, mas acaba descobrindo, com o raiar do sol, que se encontra no deserto do Saara, onde morrerá de calor antes do meio-dia”, revelou em Rastejando até Belém (1968). Ela jamais soube explicar que tipo de inspiração levou sua mente infantil a uma trama tão mórbida, tampouco o que a fez se devotar às palavras. Seu olhar ácido e irônico parecia um dom inato e mítico — e, mesmo assim, não lhe ofereceu todas as respostas. No divã de Para John, Didion investiga a si mesma e registra uma última descoberta contundente: nem mesmo autores consagrados escapam da condição humana.
Publicado em VEJA de 25 de julho de 2025, edição nº 2954