Ícone de fechar alerta de notificações
Avatar do usuário logado
Usuário

Usuário

email@usuario.com.br
Semana Cliente: Revista em casa por 7,50/semana

Joan Didion: as revelações íntimas do diário de uma autora mítica

Nos textos póstumos de 'Para John', a celebrada escritora americana expõe sua intimidade e investiga a si mesma em sessões com um terapeuta

Por Thiago Gelli Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 26 jul 2025, 08h00

“Por alguma razão, você cresceu esperando que o pior acontecesse, sem uma predisposição genética para a negação”, observou o psiquiatra Roger MacKinnon em uma de suas primeiras sessões com a ensaísta californiana Joan Didion (1934-2021). A constatação não seria novidade para qualquer admirador da autora, que fez do pessimismo e da franqueza seu ganha-pão. Com seu olhar incisivo, questionou a contracultura, investigou as entranhas de guerras, construiu heroínas fictícias de humor seco e se tornou símbolo de estilo e comportamento entre os anos 1960 e 1980, com seus óculos escuros, cigarro e uma expressão blasée. Na conversa com o terapeuta, porém, ela buscava esperança. O motivo era a intensificação do alcoolismo da filha adotiva, Quintana, então com 33 anos. Após seis consultas, Didion passou a relatar as conversas em cartas ao marido, o também escritor John Gregory Dunne (1932-2003). Encontradas numa gaveta após sua morte por complicações do Parkinson, em dezembro de 2021, aos 87 anos, as páginas escritas entre 1999 e janeiro de 2002 diluíram mistérios em torno da autora e se transformaram no livro póstumo Para John, já comercializado em pré-venda no país, antes do lançamento em 25 de agosto.

Didion começou a carreira jornalística em 1956, aos 21 anos, após ganhar um concurso para trabalhar na revista Vogue. Lançou o primeiro romance sete anos depois, e não parou de publicar ensaios. Alguns formam sua obra essencial O Álbum Branco (1979), que fez de Didion um sinônimo de Los Angeles ao sobrepor histórias de ativistas fundadores dos Panteras Negras, dos roqueiros do The Doors e até de criminosos como Linda Kasabian, da seita de Charles Manson. Também trabalhou em Hollywood e roteirizou longas como Os Viciados (1971) e Nasce Uma Estrela (1976). Os arredores em que vivia na época eram tão glamorosos que até o carpinteiro responsável pela reforma de sua casa estava fadado ao estrelato: era Harrison Ford, então na faixa dos 20 anos.

PARA JOHN, de Joan Didion (tradução de Marina Vargas; HarperCollins; 224 págs., 89,90 reais e 54,90 reais em e-book)
PARA JOHN, de Joan Didion (tradução de Marina Vargas; HarperCollins; 224 págs., 89,90 reais e 54,90 reais em e-book) (./.)

A terapia foi um ponto de virada. Com a ajuda de MacKinnon, Didion se viu mais aberta e voltou sua escrita para as próprias memórias quando o pior de fato aconteceu. Em dezembro de 2003, o marido, Dunne, morreu de infarto um dia após a internação de Quintana por pneumonia, começo de uma série de complicações de saúde que durariam até agosto de 2005, quando a filha também morreu, de um quadro de pancreatite aguda. Da primeira perda, surgiu o finalista do Pulitzer O Ano do Pensamento Mágico (2005) e, da segunda, Noites Azuis (2011).

Ambos os livros de memórias revitalizaram sua voz com sensibilidade ímpar, equilibrando visão poética e frieza analítica. Nenhum deles, porém, é dotado da mesma vulnerabilidade de Para John — sem firulas ou elipses. Nas cartas, Didion revela um câncer de mama que enfrentou sem contar a ninguém além do marido, a ponto de buscar tratamento em uma rua longínqua para fugir de conhecidos. Questionada pelo psicólogo, relembra quão distante era seu pai; pondera como pode ter falhado enquanto mãe; debate uma agressão cometida por um ex-parceiro; diz ter cogitado o divórcio após se casar, em 1964; e reflete sobre o impacto de duas outras mortes em sua família: a do cunhado Stephen, que cometeu suicídio em 1980, e a da sobrinha Dominique Dunne, morta pelo namorado em 1982, pouco tempo após estrelar Poltergeist. A transparência é tanta que se assemelha a uma invasão de privacidade, já que em vida ela nunca manifestou o desejo de expor as cartas. A publicação, porém, conta com um malabarismo justificativo em seu prefácio: se o objetivo dos textos era informar seu marido das sessões, Didion não teria escrito sobre a de 7 de junho de 2000, na qual ele esteve presente como terapia conjunta — uma deixa usada para inferir que ela teria outros leitores em mente.

Continua após a publicidade
EM FAMÍLIA - Didion com o marido, Dunne, e a filha, Quintana: dramas pessoais
EM FAMÍLIA - Didion com o marido, Dunne, e a filha, Quintana: dramas pessoais (./Netflix)

Prolífica, Didion publicou cinco romances, cinco coletâneas de ensaios, três livros-reportagens e dois livros de memórias. Sua relação com a escrita começou aos 5 anos, quando a mãe sugeriu que, em vez de choramingar, canalizasse os sentimentos na folha de papel. “A primeira anotação é sobre uma mulher que acredita estar morrendo de frio em uma noite no Ártico, mas acaba descobrindo, com o raiar do sol, que se encontra no deserto do Saara, onde morrerá de calor antes do meio-dia”, revelou em Rastejando até Belém (1968). Ela jamais soube explicar que tipo de inspiração levou sua mente infantil a uma trama tão mórbida, tampouco o que a fez se devotar às palavras. Seu olhar ácido e irônico parecia um dom inato e mítico — e, mesmo assim, não lhe ofereceu todas as respostas. No divã de Para John, Didion investiga a si mesma e registra uma última descoberta contundente: nem mesmo autores consagrados escapam da condição humana.

Publicado em VEJA de 25 de julho de 2025, edição nº 2954

Publicidade

Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

OFERTA RELÂMPAGO

Digital Completo Anual

Acesso ilimitado ao sites, apps, edições digitais e acervos de todas as marcas Abril
De: R$ 16,90/mês
Apenas R$ 1,99/mês
ECONOMIZE ATÉ 11% OFF

Revista em Casa + Digital Completo Anual

Receba 4 revistas de Veja no mês, além de todos os benefícios do plano Digital Completo (cada revista sai por menos de R$ 7,50)
De: R$ 55,90/mês
A partir de 35,90/mês

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
*Pagamento único anual de R$118,80, equivalente a 9,90/mês.