IMPERDÍVEL: ‘Mulheres do Século 20’ e seu microcosmo pós-hippie
Ecoando temas como a revolução sexual, o filme transforma o pessoal em político, reverberando o slogan feminista de meados dos anos de 1970
Uma das primeiras cenas de Mulheres do Século 20 envolve um carro pegando fogo no estacionamento de um mercado. Icônica, a imagem poderia ser até uma instalação artística, mas não é o caso. Trata-se do velho automóvel de Dorothea (Annette Bening), deixado pelo ex-marido, quando se separaram. Mesmo com a perda, ela não se deixa abater e até convida os bombeiros para passarem em sua casa à noite, pois está dando uma festa de aniversário. E eles vão. Essa primeira cena já estabelece a personalidade nada melancólica da protagonista, que mora em Santa Barbara com seu filho adolescente, Jamie (Lucas Jade Zumann), e outras duas pessoas que alugam quartos na casa. Um deles é William (Billy Crudup), uma espécie de faz-tudo que está ajudando na reforma do imóvel. A outra é Abbie (Greta Gerwig), uma jovem fotógrafa recuperando-se de um câncer.
É uma vida comunal pós-hippie que ecoa os anseios e utopias da década anterior. Dorothea, como boa veterana que é dos anos 1960, tem o espírito livre, mas com responsabilidades. Não se sente preparada para criar o filho sozinha, por isso conta com a ajuda da dupla de inquilinos e da adolescente Julie (Elle Fanning), amiga de Jamie, que às vezes passa a noite na cama dele, sem que haja qualquer insinuação sexual ou romântica: eles apenas ficam conversando, trocam confidências ou dormem abraçados.
No filme de Mike Mills, as ações são vistas pelos olhos de Jamie, que tenta descobrir e dimensionar Dorothea, uma daquelas personagens “maiores do que a vida”, que o longa tenta apreender de forma bonita. Ecoando temas como a revolução sexual dos anos de 1960, o filme transforma o pessoal em político, reverberando o slogan feminista de meados dos anos de 1970. A trajetória de Dorothea e dos outros personagens são uma compreensão dos fracassos e avanços das lutas da década anterior. Assim, situar o longa em 1979 ganha um caráter representativo. É, possivelmente, o último ano de esperança. A década que se avizinha, com a ascensão do neoliberalismo, enfraqueceu – quando não derrotou por completo – as conquistas sociais, políticas, culturais de não muito tempo atrás.
Sem uma narrativa ao modo clássico, Mills (que também assina o roteiro indicado ao Oscar) constrói um filme estruturado em fragmentos de lembranças, permitindo-lhe avançar e recuar no tempo sem qualquer problema, dando o destino de suas personagens como se elas fossem dotadas de uma consciência daquilo que ainda está por vir.
(Com Reuters)