Gloria Perez está de volta: caricatura, clichê e merchan social
‘A Força do Querer’ estreia com capítulo em que novela já salta de fase, índio salva meninos com bebida mágica e tema da transexualidade tem destaque
Não há cenas rodadas em um país distante nem, ao menos no primeiro capítulo, uma sequência de dança típica com que se possa aprender passos pouco usuais nas pistas da moda do eixo Rio-São Paulo. Mas os elementos que fazem de uma novela de Gloria Perez uma, bem, uma novela de Gloria Perez, estão todos em A Força do Querer, folhetim que estreou na faixa das 9 da Globo nesta segunda-feira, no lugar da falida A Lei do Amor, de Maria Adelaide Amaral e Vincent Villari. Há muitas histórias de amor, em especial de desencontros amorosos, personagens compostos a partir de um traço marcante que faz deles quase caricaturas, clichês empregados para pintar contextos e cenários e o hasteamento de uma bandeira social – postura da autora que aqui ressurge de forma mais abrangente, voltada para o meio-ambiente e a questão da transexualidade, tema quente hoje.
A novela começou com belas imagens da Amazônia, onde Eugênio (Dan Stulbach) faz aquela que, espera, seja sua última viagem para comprar produtos da terra. Ele está acompanhado do filho, Ruy (Fiuk na fase adulta), e do primo Caio (Rodrigo Lombardi), que se prepara para assumir o seu lugar na sociedade que tem com o irmão, Eurico (Humberto Martins), em um comércio de alimentos no Rio de Janeiro. Eugênio quer investir na sua carreira de predileção, o direito. Mas tudo dá errado para todo mundo. Ruy quase morre afogado ao cair em um rio no Acre, terra da novelista, e Caio leva um fora da namorada, Bibi (Juliana Paes), ao voltar para casa, de onde parte para uma temporada no exterior ao descobrir que não foi apenas deixado, mas trocado por outro. Com a partida de Caio, Eugênio engaveta os planos de abrir um escritório de advocacia, projeto que só vai colocar de pé na segunda parte do capítulo, depois de um salto de pelo menos dez anos.
Ruy é salvo primeiro por Zeca (Marcos Pigossi na fase adulta), garoto do mesmo tamanho que o vê em apuros e se joga na água. Depois, ambos são resgatados e ressuscitados por um índio. A cena, que lembra Pantanal e Velho Chico, de Benedito Ruy Barbosa, não poderia ser mais lugar-comum. Mas foi também fantástica – no nível da fantasia de produções como Crepúsculo. No meio de uma pajelança em que reanima os meninos, o índio provoca raios no céu, num efeito à la Dragon Ball Z, e, depois de dar a eles uma poderosa bebida numa cabaça, os leva a uma viagem lisérgica pelo rio e pela natureza. O empoderado xamã ainda roga uma praga – ops, profecia – que os coloca em vértices opostos do triângulo amoroso que formarão com Ritinha (Isis Valverde).
Nesse meio tempo, vê-se Eugênio em um diálogo todo de picos dramáticos com o barqueiro. “Por que eu também não morri?”, conclui depois de meia dúzia de frases igualmente fortes, uma sequência em que não há um crescendo, só pancadão.
Também nesse ínterim, são apresentados os personagens Eurico, Silvana (Lilia Cabral) e Joyce (Maria Fernanda Cândido). São todos tipos: ele é o homem rico (até no nome), sério e dedicado ao trabalho e à família. Sua mulher, Silvana, é uma viciada em jogos. E Joyce é a cunhada estilista, um tanto fútil e egoísta, que não respeita as vontades da filha, Ivana (Carolina Duarte), e quer fazer dela o seu espelho.
Dos personagens mostrados nesta segunda-feira, os mais promissores, porque mais complexos, parecem ser Ivana, que se descobrirá menino e fará a transição de gênero ao longo da novela, Eugênio, com suas questões existenciais, e Bibi, cheia de ambição e de caráter duvidoso, além de Ritinha, a sereia amoral que fez uma breve aparição no desfecho do capítulo.
Elogiada por Aguinaldo Silva no Twitter – deixou o “uniforme de gostosa” e virou “uma grande atriz” –, Juliana Paes apresentou as primeiras escolhas que levam Bibi para perto do tráfico. Ela desiste de ficar com Caio porque sente que o relacionamento já não é essas coisas – num diálogo confuso, primeiro diz que não o ama mais, depois acusa-o de não a amar – e o troca por Rubinho (Emilio Dantas) e vai morar no morro.
Não é difícil saber que produto vai sair dessa mistura toda – uma novela de Gloria Perez. Difícil é saber se A Força do Querer será capaz de reerguer a combalida audiência do principal horário da teledramaturgia da Globo. Mas, perto da chatérrima A Lei do Amor, os raios mágicos do índio feiticeiro não parecem necessários.