Fellini ganha museu no centro histórico da pequena Rimini, onde nasceu
Espaço abre ao público esta semana com espetáculos especiais e visitas guiadas — tudo, garantem os organizadores, dentro dos protocolos sanitários
Título do mais nostálgico entre os filmes de Federico Fellini (1920-1993), Amarcord (1973) tem origem no dialeto de Rimini, cidade natal do cineasta, na região da Emilia-Romagna, no nordeste da Itália. A palavra, originária da expressão em italiano “io mi ricordo”, significa “eu me lembro”, em português. Rodada in loco, a produção que revisita a infância e a juventude do excêntrico diretor está entre as evocações do novo Museu Fellini, que abre ao público esta semana com espetáculos especiais e visitas guiadas — tudo, garantem os organizadores, dentro dos protocolos sanitários. Trata-se, na verdade, de um polo museológico espalhado por três pontos de destaque no centro histórico do balneário: o Castelo Sismondo, o Palácio Fulgor e a Praça Malatesta.
Conhecido por envolver sua vida em um véu de ambiguidade e por se definir como um mentiroso contumaz, Fellini transportou para sua obra muitos dos mitos que fabricou sobre si próprio. Um deles, alimentado até pelo sogro, pai da atriz Giulietta Masina, dizia que o cineasta havia nascido no vagão de primeira classe de um trem que viajava da estação de Viserba, em Rimini, até a vizinha Riccione. Outra lenda, ainda mais elaborada, dava conta de que, aos 7 anos, ele fugiu com uma trupe circense que passara na cidade para voltar apenas alguns dias depois. Assim como o cineasta não via limites para a imaginação, os curadores incentivam os visitantes a se portarem do mesmo modo nas atrações. No Castelo Sismondo, uma fortaleza do século XV, exposições multimídia imersivas usarão tecnologia de ponta para fazer com que eles se sintam dentro de filmes como Noites de Cabíria (1957), A Doce Vida (1960) e Casanova de Fellini (1976).
Fellini dizia que não era muito de ir ao cinema quando pequeno, mas lembrava vivamente de quando assistiu, no colo do pai, vestido de marinheiro, a uma sessão do então popular Maciste no Inferno (1925), no lendário Fulgor, um dos quatro cinemas em atividade em Rimini. Anos mais tarde, já jovem e com fama de bom ilustrador, desenhou para o gerente da sala cartazes com os grandes astros da época em troca de ingressos grátis. Imortalizado em Amarcord, o cinema instalado em uma construção do século XVIII faz parte do conjunto de atrações dedicadas ao cineasta e abrigará exposições permanentes com as cenografias desenhadas por Dante Ferretti para filmes como Ensaio de Orquestra (1978), Cidade das Mulheres (1980) e Ginger e Fred (1986), além de uma biblioteca de pesquisa física e digital, e até um “cineminha” onde serão exibidos os clássicos fellinianos.
A Praça Malatesta, uma grande área externa com gramados, arenas para shows e um espaço que remete tanto ao circo quanto ao final de Oito e Meio (1963), completa o circuito. É o local reservado para instalações de vídeo, de realidade aumentada e programações de curta duração. E também onde se encontra uma estátua da rinoceronte-fêmea que aparece no fim de E la Nave Va (1983), que causou polêmica na cidade por atrair crianças e não ser segura para que se suba nela. “O museu não interpreta o cinema de Fellini como uma obra acabada, mas como a chave para sua crença de que ‘tudo é imaginado’ ”, declarou o prefeito de Rimini, Andrea Gnassi, citando parte de um verso de Fernando Pessoa usado no filme A Voz da Lua (1990).
Os museus descobriram o potencial dos cineastas como fortes chamarizes. Na Ilha de Fårö, no Mar Báltico, o Centro Bergman presta tributo à obra do sueco Ingmar Bergman (1918-2007) e preserva sua memória filmográfica. O americano George Lucas, com 77 anos, está construindo o Lucas Museum of Narrative Art, em Los Angeles, para preservar o seu legado, que se resume em grande parte à saga Star Wars. No Brasil, a Cinemateca Brasileira, em São Paulo, guarda em seus dois endereços materiais igualmente preciosos para a manutenção da história cultural do país. Um deles, na Vila Mariana, permanece fechado e o outro, na Vila Leopoldina, pegou fogo no fim de julho, com perdas inestimáveis. É preciso mirar no exemplo de quem cuida de sua memória para construir um futuro melhor.
Publicado em VEJA de 25 de agosto de 2021, edição nº 2752