‘Fazer arte é fazer política’, diz Adriana Calcanhotto sobre novo álbum
Cantora lança o álbum 'Só', composto no confinamento durante 43 dias, com músicas inspiradas pela pandemia e pela crise política nacional
Adriana Calcanhotto precisou de quase dez anos para compor, produzir e divulgar as nove faixas do álbum Margem, lançado no ano passado. Acostumada a escrever sem pressão, a urgência da quarentena produziu um efeito contrário na compositora, que produziu e lançou recentemente, em apenas 43 dias, seu novo trabalho, o álbum Só, também com nove músicas, escrito e inspirado neste período de pandemia.
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Clique e AssineProfessora de música na Universidade de Coimbra, em Portugal, cujas aulas foram canceladas, Adriana aplicou os ensinamentos que daria aos seus alunos na feitura deste novo disco. Por exemplo: sempre escrever uma nova música antes do almoço. “Não importa o resultado — se a música vai sair boa ou não — e, sim, a disciplina de se propor a fazer aquilo”, diz ela em entrevista a VEJA. As faixas seguem os humores da quarentena. Há músicas sobre isolamento, sobre enxergar a vida passar pela janela (e os protestos políticos feitos ali), sobre a saudade que sente de Coimbra e até um funk, feito em parceria com Dennis DJ. “O impacto quando ouça a batida do funk, é o mesmo quando ouço a batida do Olodum”, compara. Leia a seguir os principais trechos da entrevista:
Qual foi o motor criativo para compor um novo álbum em tão pouco tempo? Compus o disco em 11 dias e o processo todo levou 43 dias. Nunca vi isso. Conheço artistas novos que não têm muita verba e agilizam a gravação em horários ociosos de estúdio. Mas, um processo inteiro em 43 dias, desde a composição da primeira canção até o lançamento, realmente, para mim, que às vezes levo dez anos para lançar um disco porque gosto de fazer as coisas com calma, é uma novidade total. A urgência é geral.
Você se propôs a escrever uma música nova até a hora do almoço. É um tipo de exercício que daria aos seus alunos na Universidade de Coimbra? Cada artista trabalha de um jeito. O prazo apertado ajuda. A coisa de fazer uma nova canção até a hora do almoço, poderia, sim, ter sido uma coisa que eu propusesse para os meus alunos em Coimbra. Não importa o resultado — se a música vai sair boa ou não — mas a disciplina de se propor a fazer aquilo, de sentar para fazer, de não almoçar se não terminar. Essas coisas ficaram na minha cabeça porque, nesse período de março e maio, eu dou aula de composição lá em Coimbra. Então, eu estou condicionada a pensar e a ter a disciplina acadêmica, fora o próprio acontecimento da pandemia: eu estava indo para Portugal para propor projetos para os alunos e dar o curso.
O novo álbum surpreende com uma faixa de funk. No passado, você regravou Fico Assim Sem Você, do Claudinho e Buchecha. Porque esse estilo musical ainda é tão estigmatizado no Brasil? Escuta funk em casa? Muita gente pensa que o funk é estigmatizado no Brasil por causa das letras, mas é estigmatizado porque é uma musica de gente pobre e gente preta. Exatamente como o samba. O impacto quando ouço a batida do funk é o mesmo quando ouço a batida do Olodum. É uma síntese e muito poderosa em termos rítmicos. Em casa, eu ouço pouca música. Li uma frase da Marina Lima em uma revista que eu guardei para sempre: “Eu trabalho com música, então eu preciso de silêncio”.
Por serem músicas compostas na quarentena e falando sobre o período, receia que fiquem datadas? Se vai ficar datado é uma dúvida que ninguém sabe. Não sei se a gente vai ter uma memória triste disso ou se vai significar um momento bom. A pandemia nos dá condições de repensar o mundo. E isso, mais para frente, pode ser uma memória positiva.
A letra de O Que Temos diz que “o que temos são janelas e panelas”. Ao fundo, estão sons dos panelaços feitos em protesto contra o presidente Jair Bolsonaro. É importante um artista se manifestar politicamente? Quando o artista faz o seu trabalho, que é fazer arte, ele está se manifestando politicamente. Fazer arte é fazer politica, qualquer coisa que se faça é politica. Eu não gosto muito da cobrança para que artista se manifeste desse ou daquele jeito. Patrulhar músicos não faz sentido. Cada artista é único e produz de formas diferentes.
O álbum é dedicado a Moraes Moreira, que não mereceu do governo nenhuma nota de pesar. Como observa o momento pelo qual as políticas culturais passam? O mais triste é o povo brasileiro, a quem ele deu tanta alegria, não poder se despedir. Não tenho esperanças na condução das políticas culturais porque não as vejo sendo feitas no momento. O que se vê, por exemplo, é que o Bolsonaro vai fechar a Cinemateca. É um crime contra o legado todo que está lá. Não consigo levar em consideração nada disso.
Antes de lançar uma música, você manda para a Maria Bethânia ouvir. Como funciona essa dinâmica com ela? É uma maluquice minha. Envio para a Maria Bethânia uns e-mails com o título: “Para o Seu Conhecimento”. Poucas pessoas entendem tanto da canção brasileira e sentiram e transmitiram tantas coisas como ela. O trabalho dela é uma grande bússola para mim. É uma ouvinte muito exigente de canções. Isso eleva o nível. Quando ela me responde um e-mail dizendo que a canção não está pronta, ela sempre tem razão.