Estudo identifica primeira menção às Américas em uma obra medieval
Texto é datado provavelmente de 1340, mais de 150 anos antes de o genovês Cristóvão Colombo desembarcar no novo continente
Em mapas dos séculos XIV e XV, quando a ideia das Américas não estava no radar dos exploradores, o grande espaço ocupado pelo Oceano Atlântico trazia indicadas apenas algumas pequenas ilhas — uma das quais curiosamente se chamava “Bresil”. Pareciam mais terras fantásticas do que reais, com representações de monstros marinhos e outros seres bizarros. Não havia uma descrição precisa do que eram, nem apontavam a presença de um continente. O desconhecimento torna ainda mais extraordinária uma descoberta realizada pela Universidade de Milão, na Itália. Os pesquisadores identificaram, em uma obra datada provavelmente de 1340, a menção a um território distante, localizado a oeste da Europa, mais de 150 anos antes de o genovês Cristóvão Colombo e sua frota de naus desembarcarem no novo continente, no histórico 12 de outubro de 1492.
Conduzida pelo italiano Paolo Chiesa, professor de literatura latina medieval e humanística, a pesquisa dissecou a Cronica Universalis, obra do frei dominicano Galvano Fiamma (1283-1344), da qual só resta uma cópia. Autor de várias crônicas escritas no período, Fiamma vivia em Milão e tinha contato com Gênova, o principal porto da época. Originalmente, o livro fazia parte da biblioteca da Basílica de Sant’Ambrogio, em Milão, desativada durante o período napoleônico e que teve seu conteúdo espalhado pelo mundo. Em 1996, o volume foi arrematado por um colecionador americano em um leilão da Christie’s e permaneceu fora do alcance do público. Até que, em 2015, Chiesa localizou-o e obteve acesso a ele. O proprietário permitiu que fossem feitas fotos de todas as páginas.
De volta à Itália, o pesquisador distribuiu as imagens entre seus alunos no Departamento de Estudos Literários, Filológicos e Linguísticos da universidade milanesa. Foi uma bolsista, Giulia Greco, agora doutoranda na Universidade de Trento, que transcreveu o trecho no qual é mencionada uma terra chamada em latim de Marckalada. Eis a tradução da passagem de Fiamma, originalmente escrita em latim: “Os marinheiros que navegam nos mares da Dinamarca e da Noruega dizem que além da Noruega, em direção ao norte, fica a Islândia. Mais adiante há uma ilha chamada Grolândia e, mais a oeste, há um terreno chamado Marckalada. Os habitantes do lugar são gigantes: há edifícios de pedras tão grandes que nenhum homem seria capaz de colocá-los no lugar, senão gigantes muito grandes. Lá crescem árvores verdes e vivem animais e pássaros. Mas nunca houve nenhum marinheiro que soubesse com certeza notícias dessa terra e das suas características”.
Como o frade poderia ter feito esse tipo de suposição? A hipótese mais plausível é que ele tenha se inspirado nas sagas nórdicas. Os navegadores vikings haviam chegado à América do Norte, onde hoje está o Canadá, mas não criaram assentamentos permanentes. Em seus relatos, falavam de expedições a Helluland, que especialistas identificam como Ilha Baffin ou Labrador, Markland, que pode ser Labrador ou Terra Nova, e Vinland, novamente Terra Nova ou um território mais ao sul. “O que descobrimos, por menor que seja, são as únicas evidências que temos até agora de que circularam boatos no centro e no sul da Europa sobre a existência de terras além do Atlântico”, disse Chiesa em entrevista a VEJA.
A descoberta demonstra que no Mediterrâneo — e em Gênova, que se supõe ser a cidade onde Colombo nasceu — circulavam informações, ainda que vagas, sobre a existência de terras além do Atlântico. O navegador poderia ter ciência desses rumores quando estava organizando sua expedição. Segundo o pesquisador, a maior importância histórica não diz respeito às Américas: “Consiste no fato de haver provas de que o conhecimento dos marinheiros, que normalmente não é atestado por fontes escritas, desempenhou um papel importante na história da viagem e da exploração”.
A próxima etapa é a publicação do Cronica Universalis. Essa parte do trabalho está sendo coordenada por Federica Favero, outra bolsista da pesquisa. Depois de localizar o manuscrito, fotografá-lo e traduzi-lo, o grupo está empenhado em organizar todo o conteúdo. “Trata-se agora de padronizar as transcrições produzidas para um padrão editorial científico, aprofundar os pontos obscuros e fornecer ao texto o comentário necessário”, diz ela. Com isso, a obra de Fiamma, um documento que nos permite saber mais sobre o nosso passado, estará à disposição de todos. Como deveria ser com tudo o que diz respeito à história da humanidade, que só saberá construir o amanhã se entender o ontem.
Publicado em VEJA de 6 de outubro de 2021, edição nº 2758