Em novo livro, Merval Pereira expõe peso das palavras na política
Nos 144 artigos reunidos em 'Desafios da Democracia', os últimos dezessete anos da vida política brasileira são expostos a conta-gotas
A última frase de Desafios da Democracia, o novo livro de Merval Pereira, é reveladora de todo o percurso que o experiente jornalista de O Globo e membro da Academia Brasileira de Letras traça nas quase 450 páginas anteriores: “E a mania de falar palavrão pode significar apenas que é uma pessoa mal-educada”. A pessoa em questão é o presidente da República. Mas, mesmo que não soubéssemos, continuaria sendo a síntese do trabalho do autor em cinquenta anos de carreira: a palavra é a fonte de quem se dedica à defesa de uma imprensa democrática. E nunca pode ser vilipendiada, sob o risco de expor a falta de educação de quem a professa.
Nos 144 artigos reunidos no livro, o imortal ocupante da cadeira que foi de Moacyr Scliar expõe a conta-gotas os últimos dezessete anos da vida política brasileira, sem se arvorar no papel ocupado pelos moralistas. Merval e suas palavras não precisam ter razão, pois revelam em textos curtos e no calor dos acontecimentos as vozes dos agentes da história. Sejam eles os homens e mulheres, sejam agrupamentos sociais — ou mesmo ideias. Essa sutileza revela-se na insistência em usar palavras de outros intelectuais para dar vida a seus argumentos. Como se reconhecesse que as suas próprias não seriam tão esclarecedoras quanto aquelas aprendidas com outras pessoas. É marcante a intimidade que ele revela ter com ideias e livros dos mais variados. Assim, salta aos olhos a naturalidade com a qual retrata a opinião do historiador Kenneth Maxwell sobre a Rússia de Vladimir Putin ou como enxerga a utilidade da obra do economista chileno Carlos Matus (1931-1998) para entender o Brasil dos anos Lula.
O formato do livro, que apresenta os textos em ordem cronológica e não agrupados por temas, torna mais difícil identificar o fio condutor de suas ideias. Mas algumas pistas são instigantes. Há inúmeras citações ao historiador José Murilo de Carvalho, dono de uma consistente obra sobre a trajetória política do país. Assim, identifica o mesmo teatro de sombras que Carvalho define como palco da política nacional. E sabiamente mostra que o mau uso das palavras e de seus significados — como a imprudente acusação de que Fernando Henrique Cardoso legou uma “herança maldita”, que o chavismo venezuelano era “democrático” ou que as propostas de resolução das distorções do Estado brasileiro são sempre “neoliberais” — é, na verdade, parte do veneno que adoece a democracia. Em um dos artigos, cujo título não por coincidência é “Palavras”, Merval discute como elas são distorcidas na política brasileira: “Geralmente tudo o que se diz pode significar o contrário”.
A essa contundente conclusão, Merval soma uma sutil provocação aos operadores do marketing político que contribuem para o enfraquecimento da democracia, comparando o publicitário João Santana ao marqueteiro político americano Lee Atwater em um texto de título sugestivo, “João ‘Bicho-Papão’ Santana”. E segue com elegantes críticas à imprensa, aos efeitos deletérios da tecnologia e à contribuição do nosso triste atraso educacional para a manutenção do pior tipo de populismo assistencialista. Esse quebra-cabeça oferecido por Merval Pereira só se revela quando todas as peças estão encaixadas. E o recado é que o desprezo, o mau uso e as distorções provocadas pelas palavras erradas contribuem para a corrosão da democracia, iluminando como a Nova República chegou à encruzilhada que enfrenta hoje. Em suma, é a linguagem da democracia que está sob ameaça.
Publicado em VEJA de 20 de outubro de 2021, edição nº 2760
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