Eduardo Kobra usa seu cubismo pop como antídoto contra a pandemia
Famoso mundialmente por seus murais colossais, o artista emprega a arte também para superar seus conflitos pessoais
Em enquete realizada semanas atrás nas redes sociais, o paulistano Eduardo Kobra pediu aos seguidores indicações de livros para compor uma biblioteca. Mas os 150 volumes selecionados não seriam feitos de papel de verdade: tratava-se de elementos da nova pintura colossal com a marca do mais bem-sucedido muralista brasileiro. Com 22 metros de altura e quase 300 metros quadrados, o colorido painel exibe a imagem de um menino subindo uma escada para apanhar um livro na estante. A obra, que acaba de ser concluída, empresta seu cubismo pop ao paredão de uma escola na cidade paulista de Sorocaba. Kobra, de 45 anos, produziu assim uma singela alegoria para celebrar a importância da educação. “Ao subir a escada, o menino simboliza o esforço pelo conhecimento, e a vitória de cada degrau superado”, diz.
O novo trabalho soma-se a um currículo notável, que inclui dezenas de murais espalhados pelas metrópoles do mundo todo, de São Paulo a Moscou e Tóquio. Mas a imagem do garoto na biblioteca tem gosto especial: ela assinala um momento de superação do próprio artista. Kobra passou por fortes tribulações pessoais em 2020. No fim de fevereiro, ele e a esposa, Andressa, perderam a filha recém-nascida, Catarina, horas após o parto. Em seguida, a pandemia explodiu, cancelando sua concorrida agenda de intervenções no Brasil e no exterior — ele estava de viagem marcada para fazer um painel na cidade-estado de San Marino, na Itália. A fatura psicológica do isolamento social foi particularmente pesada para um artista cuja razão de viver é pintar ao ar livre. “Ficar trancado em casa por tantos meses me fez muito mal”, revela.
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Na quarentena, Kobra enfrentou problemas de saúde. Ele foi acometido com severidade pelas sequelas de uma doença contra a qual luta há cerca de vinte anos: a intoxicação por metais pesados das tintas e solventes, mesmo mal que vitimou o brasileiro Cândido Portinari (1903-1962) e levou o espanhol Francisco de Goya y Lucientes (1746-1828) à surdez. Embora hoje se proteja com máscaras e luvas enquanto grafita, Kobra viu seus problemas nos pulmões recrudescerem: em meio à pandemia, foi parar no hospital quatro vezes. Um quadro de depressão coroou os tempos difíceis. “Houve momentos em que achei que não teria mais forças para pintar”, desabafa.
O trabalho acabou sendo o antídoto para sua volta por cima. Kobra engrossou o pelotão de artistas que transformaram a arte de rua na grande expressão cultural da pandemia ao redor do planeta. Mas, sem poder circular em razão dos distúrbios respiratórios, o fez a seu modo. Criado em estúdio, o painel Coexistência — que apresenta cinco crianças de religiões diferentes usando máscaras e em posição de oração — foi leiloado por 450 000 reais, revertidos em 20 000 kits para moradores de rua e refugiados. À época da explosão portuária em Beirute, no Líbano, Kobra leiloou outro painel — que deve se tornar um mural urbano por lá, quando o coronavírus deixar — e destinou os 50 000 dólares arrecadados a instituições de ajuda ao país. Mais recentemente, transformou em arte um cilindro de oxigênio em desuso — os 700 000 reais pagos por instituições parceiras do artista deverão ser aplicados na construção de duas usinas de oxigênio em Manaus. Ele pretende doar, ainda, obras ao Instituto Butantan e à Fiocruz, em homenagem às campanhas de vacinação. Por fim, está lançando um instituto filantrópico para apoiar jovens artistas de rua das periferias brasileiras.
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A cruzada pela educação é talvez o tema mais caro ao artista. Oriundo de uma região paulistana com inúmeras mazelas, o Campo Limpo, ele estudou em escola pública e ali iniciou sua bem-sucedida paixão pelo grafite. Em setembro passado, deu os primeiros passos na volta às pinturas gigantes criando um painel para a escola em Suzano que foi palco de um trágico massacre em 2019 — a cena tocante mostra um estudante abraçando seu professor. Ainda mais amplo e espetacular, o mural da biblioteca demarca outro avanço em sua recuperação física e mental. “Enquanto puder subir os degraus da escada, eu vou continuar”, diz Kobra. Está aí um artista que pensa grande — no trabalho e na vida.
Publicado em VEJA de 10 de fevereiro de 2021, edição nº 2724
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