É duro ser Gioconda: o que muda com a sala exclusiva para a Mona Lisa
O presidente Emmanuel Macron deu a boa nova: a obra-prima terá um espaço para chamar de seu, isolado de seus pares

Não tem jeito. É mais fácil ver com calma a Mona Lisa de Leonardo da Vinci na capa de um caderno escolar do que na Salle des États, a maior do Museu do Louvre, em Paris. Para chegar perto do mais conhecido rosto da história, pintado no início dos anos 1500, é preciso atravessar as hordas e, na base de cotoveladas mal-educadas, ir abrindo espaço até o nicho de vidro. Fossem apenas os cotovelos, o.k. Hoje o desafio é ultrapassar a barreira de braços erguidos com onipresentes smartphones apontados para o sorriso indecifrável e sua aura enigmática, resultado da delicadeza do sfumato, a técnica refinada de imprimir névoa no desenho, ao abrandar os gradientes entre as tonalidades. A situação só piora: quem consegue se avizinhar da peça envolvida pela moldura dourada, trata de andar de um lado para o outro de modo a tentar confirmar um mito: o olhar da Gioconda acompanharia quem a vislumbra, de lá para cá, de cá para lá (não é verdade).
Na ponta do pincel, a estatística dá conta do eterno alvoroço. O palácio parisiense recebe todos os anos algo em torno de 9 milhões de turistas, ou 30 000 por dia — 80% vão direto ao ponto em que está a dama florentina, e muitos se restringem a ela. O que fazer? Na semana passada, em meio ao detalhamento do mau estado do edifício, inaugurado em 1793, com goteiras e paredes descascadas, “abaixo dos padrões de excelência”, foi o próprio presidente Emmanuel Macron quem deu a boa nova: a Mona Lisa terá uma sala para chamar de sua, isolada de seus pares.

Apartá-la — a tela pode ir para o subsolo — é um modo de proteção, de organização das filas e acessos, mas é também cuidado com a vizinhança. Quadros seminais, bem ao lado da mãe de todas as pinturas, passam despercebidos, em ofensa ao bom gosto. E, então, haverá vida nova para a Festa do Casamento em Caná, de Paolo Veronese, e O Homem com uma Luva, de Tiziano Vecellio, entre outras joias da civilização. “A experiência de ver a Mona Lisa é frustrante”, diz Laurence des Cars, diretora do Louvre. Uma pesquisa feita por um reputado site francês de compras de ingressos, ao colher opiniões de mais de 18 000 pessoas, fez a triste constatação: entre os maiores marcos artísticos do mundo, a Gioconda é a campeã de decepção, com 37% de menções negativas. A média de críticas ruins, entre 100 obras, é de 19%. É duro ser a Mona Lisa em tempo de tanto turismo.
Ícone da capacidade humana, demasiadamente humana, de criar coisas belas enquanto faz guerra, aquele objeto de 77 cm de altura por 53 cm de largura já passou por poucas e boas. Agora mesmo, está no centro de uma discussão inócua de um grupo de conservadores italianos que pretende tê-la “de volta” e sugere o pouso em Milão, sede da Olimpíada de Inverno de 2026, em parceria com Cortina d’Ampezzo. A alegação: Napoleão Bonaparte a teria confiscado em 1796. Mentira. Ela está na França desde 1516, comprada por François I do próprio Leonardo, inicialmente exposta numa das galerias de Versalhes.

Dada a relevância mítica daqueles lábios e das mãos delicadamente pousadas de Lisa Gherardini, mulher do mercador Francesco del Giocondo, bulir com a personagem sempre foi um modo de ganhar notoriedade — e o deslocamento de sala anunciado por Macron apenas confirma esse movimento. Em agosto de 1911, tempo sem vigilância, o pintor de paredes Vincenzo Peruggia tirou a tela do enquadramento e a levou embora. O roubo só se tornaria público no dia seguinte. Peruggia virou celebridade, condenado a um ano e meio de prisão. Dizia ter feito o que fez por patriotismo (o italiano, ressalte-se, fazia como a turma nacionalista de agora, atacando Napoleão, bradando contra a França em nome de um suposto direito da Itália). O larápio foi parar nas manchetes, e a Mona Lisa ganhou então a relevância que nunca mais pararia de crescer. Em janeiro de 2024, duas ativistas de um movimento ambientalista emporcalharam a vitrine da bela senhora com sopa de abóbora.
Os visitantes terão algum conforto no Louvre renovado. A Gioconda solitária poderá enfim ser vista com um pouco mais de tempo e cuidado — mas é improvável que ela própria algum dia venha a ter sossego. Da letra de Visions of Johanna, linda canção de Bob Dylan, composta em 1966, em tradução de Caetano W. Galindo: “Mas Mona Lisa deve ter cansado da estrada, dá pra ver naquele sorriso”.
Publicado em VEJA de 7 de fevereiro de 2025, edição nº 2930