Documentário reexamina assassinato de Celso Daniel – sem tomar partido
Série da Globoplay engrossa o filão das atrações do tipo 'true crime' ao investigar o intricado caso da morte do ex-prefeito de Santo André
Para a polícia e o Poder Judiciário, o caso Celso Daniel já foi esclarecido: o assassinato do ex-prefeito de Santo André, ocorrido há 20 anos, não teve motivação política. É considerado um crime comum: o político teria sido vítima de um assalto com sequestro. Mas, com suas pontas soltas e questões mal respondidas, a execução do ex-dirigente petista até hoje continua despertando toda sorte de teorias conspiratórias. A série documental O Caso Celso Daniel, que estreia nesta quinta-feira, 27, na Globoplay, busca se equilibrar em meio à cacofonia de versões sobre o crime. Dividido em oito episódios de quase 50 minutos cada, o programa chega com a pretensão de reexaminar todos os fatos já descobertos e as mil especulações a respeito do crime, deixando para os espectadores a responsabilidade de decidir quem está certo ou errado.
Com a nova série, a Globoplay reforça sua aposta num filão do entretenimento que se tornou popular no país após ganhar o público americano: as narrativas na linha true crime. Ou seja, aqueles documentários baseados em crimes reais e controversos que marcaram a opinião nacional, como o Caso Evandro (da própria Globoplay) ou a série sobre Elize Matsunaga (da Netflix). “Percebemos que o público brasileiro gosta do gênero e dialoga com isso”, afirmou em entrevista a VEJA o diretor de produtos e serviços digitas da Globo, Erick Bretas. “O streaming abriu uma nova era para o true crime por permitir contar uma longa história, algo impossível no cinema”, completou o diretor da série, Marcos Jorge.
Embora os produtores tenham dado à atração um tratamento de true crime, as implicações do caso Celso Daniel obviamente vão muito além: ele continua pautando a política brasileira. Desde o início, o assassinato do ex-prefeito do ABC paulista vem despertando opiniões exacerbadas em todos os espectros ideológicos. A cada dois anos, sempre que uma nova eleição surge no calendário, o crime é usado pelos candidatos para atacar os oponentes. Recentemente, o presidente Jair Bolsonaro afirmou que morte de Celso Daniel foi encomendada pelo PT, partido do ex-prefeito, “porque ele sabia de um esquema de corrupção” na prefeitura de Santo André. A hipótese, claro, é refutada com veemência pelos petistas. “Não temos agenda. Só lançamos o documentário esse ano porque aproveitamos a efeméride de 20 anos do caso”, desconversou Bretas sobre o possível uso da série nas eleições deste ano.
O grande mérito da atração, no entanto, é o de organizar em ordem cronológica clara as diversas (e confusas) versões do caso, desatando os nós do emaranhado de informações que se acumulou ao longo dos anos. Embora não apresente nenhuma informação nova ou bombástica sobre o caso, o documentário se vale de inúmeros recursos narrativos. Para contar a história, foram feitas reconstituições das ações com desenhos animados e também dramatizações com atores, além do uso de imagens de arquivo da TV Globo, recortes de jornais e – principalmente – depoimentos de vários figurões. Estão lá, por exemplo, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e medalhões do PT avessos a entrevistas, como José Dirceu, Gilberto de Carvalho e a viúva de Celso Daniel, a ex-ministra Miriam Belchior.
Um dos principais entrevistados é Bruno Daniel, irmão do político, que voltou a dizer que Gilberto de Carvalho teria lhe dito que entregou 1,2 milhão de reais oriundo de propinas ao então presidente do PT, José Dirceu. Nas entrevistas, tanto Carvalho quanto Dirceu negaram. Bruno também voltou a acusar o PT de ter feito pressão para que a morte fosse considerada crime comum e apontou diversas irregularidades na investigação, como a não divulgação da necropsia, que poderia apontar se Celso Daniel foi torturado ou não. O advogado Luiz Eduardo Greenhalgh, então deputado federal pelo partido, acompanhou a necropsia e, em entrevista ao documentário, também voltou a afirmar que não houve tortura.
No dia 18 de janeiro de 2002, Celso Daniel estava voltando de um jantar, em uma Mitsubishi Pajero blindada dirigida pelo empresário e braço direito do político, Sérgio Silva, o Sombra, quando o veículo foi fechado por outros três carros. Na ação, após os bandidos baterem no carro, o câmbio da Mitsubishi teria entrado pane e parado, além das travas das portas terem sido destravadas. Desta forma, os bandidos conseguiram abrir as portas e levar Celso Daniel. Dois dias depois, o corpo do político seria encontrado com onze tiros, na cidade de Juquitiba, próxima da Grande São Paulo.
Um dos pontos sobre os quais a série se debruça com mais afinco é justamente na relação de Sombra com Celso Daniel. O braço-direito do político, que morreu de câncer em 2016, foi apontado pelo Ministério Público de São Paulo como o mandante do crime e chegou a ser preso, mas depois foi solto. Embora estivesse em liberdade quando morreu, ele ainda era réu na ação e o único que ainda não tinha sido julgado. Em 2012, seis integrantes de uma quadrilha foram condenados pelo crime e Sérgio restava como a única ponta solta da história que ainda poderia apresentar alguma nova versão ao caso. A série não chega a nenhuma conclusão se ele era culpado ou não, mas com a sua morte, o caso Celso Daniel, pelo menos judicialmente, chegava ao fim.