Documentário produzido por VEJA mergulha na intimidade de João Gilberto
Passagens da pouco conhecida vida privada do músico, trazidas à luz no filme, ajudam a decifrar a mente única do pai da bossa. Assista ao primeiro episódio
Envolto em uma aura de mistério que gostava de cultivar, João Gilberto sempre suscitou curiosidades e sua vida foi terreno fértil para especulações. Muito se falou, em seus últimos anos, sobre a penúria em que se encontrava, dos embates para interditá-lo e das contendas entre os filhos — o músico João Marcelo, a cantora Bebel Gilberto e a caçula, Luísa Carolina. Desde 2019, com sua morte, aos 88 anos, os holofotes vêm se concentrando no inventário do mestre da bossa nova, inventor da batida de violão que buscou inspiração no samba e deu outra envergadura à música brasileira. Além dos três herdeiros, a moçambicana Maria do Céu Harris, cuja união estável com ele foi reconhecida por liminar, disputa um quinhão do patrimônio fincado em direitos autorais — após renhida disputa com a Universal Music em torno da remasterização de discos icônicos, renderão 150 milhões de reais ao espólio.
Essa sequência eletrizante de passagens na trajetória do artista já foi bastante martelada, mas pouco ainda se sabe sobre seu tão bem guardado mundo privado, do qual quase ninguém compartilhava — uma intimidade que agora vem à luz na voz de quem teve privilegiada provinha de sua genial e geniosa mente criativa. É esse o fio condutor do documentário Bim Bom — Na Batida do João, parceria de VEJA com a produtora Doc. Films. Mais de vinte horas de gravação com duas dezenas de amigos e familiares resultaram em três episódios: O Dono da Bossa, O Gênio da Perfeição e A Voz. Eles traduzem a grandiosidade do músico, protagonista de sucessos perenes e de polêmicas que ecoaram com igual intensidade.
Suas manias não raro desagradavam mesmo àqueles que tanto o admiravam. A relação conturbada com o relógio, por exemplo, o fez aparecer quatro horas depois do horário marcado em um jantar na casa de Dorival Caymmi (1914-2008). Foi recepcionado com um impublicável palavrão proferido por Stella, mulher do cantor, que o barrou na porta.
Em outra ocasião, espalhou o pânico no apartamento em que os Novos Baianos montaram uma comunidade, nos anos 1970. De terno e gravata, acharam que era policial, fazendo tremer o teto que abrigava a jovem trupe. “Ficamos apavorados, estávamos numa época em que todo cabeludo era perseguido”, conta a cantora Baby do Brasil. Dessa vez, João Gilberto pôde entrar e engataram prazerosa noitada.
Os convidados de peso no documentário sobre João Gilberto
Na tela, fica evidente que o criador da bossa nova jamais passou incólume pela existência das pessoas com as quais conviveu. Todos que puderam mergulhar mais fundo em seu universo têm um caso incomum para relatar, trechos que ajudam a ilustrar sua busca obsessiva por perfeição e o infindável rol de excentricidades que tanto alimentava. Uma lista de peso da MPB — Gilberto Gil, Roberto Menescal, Dori Caymmi, Jards Macalé e a própria Baby do Brasil — dá uma perspectiva de como ele impactou seus percursos. “Além de ter influenciado meu gosto, João me abriu para um mundo de silêncio e contemplação”, comove-se Gil, lembrando que, certa vez, ele o convenceu a se despencar para um centro de meditação em Los Angeles que havia frequentado. Nos efervescentes tempos dos Novos Baianos, ele inspirou o nome do disco que consagrou o grupo, Acabou Chorare — expressão que a filha Bebel usou, quando pequena, depois de um tombo no México, onde viveu uns tempos com o pai e a mãe, Miúcha. “Virou algo profético, na linha acabou o choro, vamos vencer”, diz Baby.
O documentário traz ainda fragmentos de duas canções inéditas — uma composta para a neta Sofia, de 7 anos, filha de João Marcelo e da produtora Adriana Magalhães, outra desencavada por Menescal — e exibe fotos inusitadas, além de um franco depoimento da estudante de cinema Luísa Carolina, de 19 anos, do relacionamento com a jornalista Claudia Faissol. “Minha experiência com o meu pai foi completamente diferente da dos meus irmãos. Cheguei tarde na vida dele. Ele não era nada rígido, só companheiro, doce”, afirmou à produção, que inaugura projetos de VEJA na área de documentários e está disponível no site da revista. “A história tem tudo para surpreender, mostrando a dualidade de um artista que pôs o Brasil no mapa mundial da música. O João era ao mesmo tempo recluso e carente, paciente e intempestivo, habitual e imprevisível”, define Priscila Manni, vice-presidente da Doc. Films.
Fama de temperamental
Ao longo de décadas, João Gilberto fez jus à fama de temperamental, que cuidadosamente sedimentou. Em um dos episódios, Claudia Faissol relembra o temor que o acometia antes de subir ao palco, numa carreira marcada por sucessivos atrasos e cancelamentos de shows. “O João perdia a noção da hora, ficava nervoso e quem estava em volta pisava em ovos”, relata. A rotina reclusa, as madrugadas ao telefone e os gestos extravagantes estão presentes, como quando convidou seu advogado para um jantar e, em vez de ir a seu encontro, lhe enviou um banquete de luxo. Em lance inesperado, afeiçoou-se ao médico escalado para prepará-lo para uma turnê e passaram a tocar juntos mantras hindus. Um dia, ao lhe perguntar de onde vinha a batida que a tantos ouvidos ainda encanta, Menescal ouviu do inventor da bossa: “Olha, rapaz, é de um instrumento usado no samba. Não dá para fazer tudo, escolhi o tamborim”. Foi assim que João Gilberto cravou seu nome no panteão da música do século XX.
Publicado em VEJA de 8 de dezembro de 2023, edição nº 2871