De Shakira ao pagode, música vira ouro nas mãos de executivos das finanças
Uma nova geração de profissionais do ramo no Brasil e no exterior — como Daniel Lemos, ex-XP — canaliza seu talento na área cultural
Dono de uma bem-sucedida carreira em bancos brasileiros, o executivo Daniel Lemos, de 43 anos, acumulou nos sete anos em que passou na XP Investimentos um conhecimento profundo do mercado financeiro tradicional — e notou que poderia também aplicá-lo a segmentos menos convencionais. No fim de 2019, ele surpreendeu os colegas ao deixar a instituição na qual chegou a ocupar o cargo de CTO (chief techology officer), justamente para prospectar negócios alternativos. Após uma análise que abrangeu desde times de futebol até fundos imobiliários, veio o estalo: por que não a música? Afinal, nos últimos anos essa indústria sofrera uma imensa transformação, abrindo espaço para que novos players pudessem investir. Com recursos da Riza Asset, uma venture builder (organização que investe em startups e as direciona estrategicamente), ele acaba de fundar a Mousik, uma agência musical que pretende levar a lógica disruptiva usada nos bancos digitais para o gerenciamento holístico da carreira de músicos, englobando da gravação de discos aos cuidados com a imagem.
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A iniciativa de Lemos — junto com o experiente produtor musical Umberto Tavares — não é um caso isolado. Cada vez mais investidores brasileiros têm enxergado oportunidades no mercado da música. Nos últimos meses, a tendência se intensificou, mas ela não surgiu do nada. O maior exemplo vem do exterior, com a britânica Hipgnosis, fundada pelo guitarrista Nile Rodgers e pelo empresário Merck Mercuriadis. A dupla percebeu que os ganhos com direitos de propriedade intelectual de músicas de sucesso são previsíveis no longo prazo, e revelam-se resistentes até em ciclos econômicos ruins — a tendência, aliás, é que se valorizem em épocas de crise. A partir daí, a empresa adquiriu catálogos de estrelas como Neil Young e Shakira. No fim do ano passado, três anos após sua fundação, a carteira da Hipgnosis já era avaliada em 13 bilhões de reais.
No Brasil, o movimento ganhou tração durante a pandemia. Com a suspensão dos shows, diversos artistas nacionais ficaram sem sua principal fonte de renda — e a venda de seus catálogos surgiu como oportunidade de receber um dinheiro que levaria anos para entrar em suas contas. Algumas razões explicam o interesse de investidores nesse mercado. A principal delas é a previsibilidade dos ganhos — há hoje meios confiáveis de apurar dados de desempenho, seja pelo Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad), seja por execuções nos serviços de streaming. A compra é feita por uma fintech, que pode negociar com o compositor (direito autoral), com o artista ou produtor (direitos conexos) ou também com uma editora ou gravadora. E os rendimentos vêm toda vez que a faixa é tocada em shows, no streaming ou quando um disco é vendido. Com esses dados em mãos, é possível para os investidores calcular com precisão quanto vale uma música e seu lucro potencial.
Uma das pioneiras no ramo por aqui é a Hurst Capital, fintech fundada em 2020 pelo advogado Arthur Farache, ex-executivo do Citi. A empresa, que já levantou um fundo de 200 milhões de reais, adquiriu catálogos de nomes como Toquinho e Paulo Ricardo. Atualmente, é dona de 30 000 obras e fonogramas. Diferentemente das outras companhias que exploram a compra desses direitos, a Hurst permite que pessoas físicas possam investir em carteiras de royalties, com um aporte mínimo de 10 000 reais. Como caso de sucesso, Farache cita o próprio Paulo Ricardo, cuja música Vida Real ganhou novo impulso ao se tornar tema do Big Brother Brasil. “Com a pandemia, nós tivemos nossos rendimentos afetados. A proposta da Hurst chegou na hora certa”, disse Paulo Ricardo a VEJA. O acordo gerou uma arrecadação de 1,1 milhão de reais desde julho de 2020. Segundo estimativas de mercado, os artistas costumam ficar com 70% desse bolo, em média.
Quem também decidiu investir nesse novo mercado durante a pandemia foi o DJ Beowülf (que já tocou no Rock in Rio e será atração do Lollapalooza deste ano), nome artístico de João Luccas Caracas. Para fundar a gestora musical Adaggio, ele levantou em 2021 cerca de 60 milhões de reais com os fundos Arbor e Atmos Capital, e passou a adquirir catálogos que incluíam músicas do Legião Urbana, Zeca Pagodinho, Marília Mendonça, Daniela Mercury e Mamonas Assassinas. “São composições que têm muitas chances de entrar em peças publicitárias ou ser regravadas”, diz. A mais nova empresa no pedaço é a Muzikizmo, de Luiz Eurico Klotz, criador do festival Skol Beats e diretor-geral do Tomorrowland no Brasil. Com a assessoria de Marcos Rezende, da Inspire Capital Partners, Klotz adquiriu o catálogo do DJ Gui Boratto, que produziu Change, a nova música de Rita Lee.
Como todo investimento, naturalmente, há riscos envolvidos. Embora esses ativos não sofram com a volatilidade da bolsa de valores, é preciso levar em consideração outros fatores, como a piora no cenário econômico nacional, mudança nas políticas de remuneração e — o mais importante — guinadas na imagem e carreira do artista. Na sua briga com o Spotify em torno do podcast antivacina de Joe Rogan, Neil Young retirou recentemente (com o aval dos compradores dos royalties de suas músicas, por sinal) todas as suas obras da plataforma. Ele tinha 6 milhões de ouvintes mensais — o que levou os investidores da Hipgnosis a perder 60% de seus rendimentos.
A despeito de possíveis turbulências nas carreiras dos artistas, as projeções de crescimento do negócio, especialmente no Brasil, são animadoras. Umberto Tavares, sócio de Daniel Lemos na Mousik, lembra que o mercado nacional ainda vai crescer com a chegada do 5G. “Grande parte do Brasil ainda não tem acesso à internet de qualidade”, afirma. Para Lemos, a indústria da música guarda similaridades com outros setores que sofreram guinadas radicais na era digital — e a empresa identificou aí oportunidades de atuação. Diferentemente das outras iniciativas do ramo, eles não compram catálogos, mas gerenciam a carreira ou fazem parcerias com artistas, como o cantor Belo e a dupla Lucas e Orelha. “A Mousik une os setores que envolvem a carreira de um artista, trazendo todas as etapas do processo de criação da música para um mesmo ecossistema”, diz. “Somos uma empresa de música e tecnologia e ofereceremos um gerenciamento musical completo”, explica Umberto. A melodia do dinheiro nunca foi tão sedutora.
Publicado em VEJA de 2 de março de 2022, edição nº 2778
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