Datas: Sebastião Salgado e os contrastes do mundo
O fotógrafo morreu no dia 23 de maio, aos 81 anos, em Paris, de leucemia

As lentes de Sebastião Salgado ensinaram a civilização a enxergar as belezas e os horrores de nosso tempo, em contraste iluminado quase sempre por imagens em preto e branco. Não se tratava de recurso dramático, como se a ausência de cores fosse um truque para emocionar. A escolha era um manifesto. “A cor, para mim, era um momento de grande desconcentração quando ia fotografar. As pessoas têm uma ligação muito mais forte com o preto e branco do que com a cor.” O trabalho do mineiro de Aimorés, radicado em Paris havia mais de quarenta anos, ecoará ainda por muito tempo. Tem a dimensão do de monstros sagrados como W. Eugene Smith e Henri Cartier-Bresson. Pode ser comparado à obra dos muralistas mexicanos da primeira metade do século XX, como Alfaro Siqueiros e Diego Rivera, registro da miséria e heroísmo de seu povo.
Em viagens para 120 países, Salgado registrou o mundo natural e a condição humana. Tinha especial apreço por revelar o cotidiano amargo de regiões empobrecidas e vulneráveis. Podiam ser os garimpeiros de Serra Pelada, os refugiados assolados pela fome na Etiópia, os funcionários dos campos de petróleo do Kuwait em chamas. Em seus registros amazônicos, compôs um painel indizível, com raios de luz celestiais a emoldurar a imensidão da floresta e dos rios, em painéis colossais e emocionantes que pediam silêncio para serem observados. Seus registros, não por acaso, e com razão, recebiam títulos grandiosos como Gênesis, Êxodos e Terra.

Muitas vezes foi criticado por encobrir as catástrofes ambientais e o sofrimento humano com uma estética visualmente deslumbrante, ao transformar a dor em fé bondosa. Ele respondia com a inteligência dos grandes pensadores, avesso a qualquer tipo de exploração do drama alheio: “Por que o mundo pobre deveria ser mais feio que o mundo rico? A luz aqui é a mesma de lá. A dignidade aqui é a mesma que lá”. Salgado gostava mesmo é de gente. “Minha fotografia é militante”, dizia. Antes de focar a natureza, com grande-angulares, fazia fotos de pessoas bem de perto, olho no olho; quase nunca usava teleobjetivas. Passava dias sem um clique, até que as comunidades que visitava se acostumassem à presença daquele homem de feições nórdicas, falante e simpático, quase sempre com três câmeras penduradas no pescoço — no início, analógicas, como as Leica, e depois digitais. “Na realidade, não é o fotógrafo que faz o retrato, é a pessoa em frente à câmera que oferece o retrato para você”, disse certa vez a VEJA.
Ele morreu no dia 23 de maio, aos 81 anos, em Paris, de leucemia. Enfrentava problemas decorrentes de uma malária contraída nos anos 1990. “É uma pena vivermos apenas 80 ou 90 anos no máximo. Se pudéssemos viver mil anos, seríamos capazes de entender nosso planeta mil vezes melhor e viver de outra forma”, disse. Sorte nossa as fotos de Salgado poderem sobreviver mil anos.
Publicado em VEJA de 30 de maio de 2025, edição nº 2946