Como Gal Costa se tornou a ‘diva profana’ do Brasil
Dona de uma voz incomparável e de uma atitude transgressora, a cantora marcou a história da música brasileira
No dia 17 de setembro, Gal Costa subiu ao palco do Coala Festival, no Memorial da América Latina, em São Paulo, para realizar o que se tornaria seu último show. Entre as 16 000 pessoas na plateia — a maioria 50 anos mais jovens do que ela —, uma mãe e uma filha foram flagradas pelo telão chorando, abraçadas, enquanto Gal entoava a faixa Um Dia de Domingo. Composição de Michael Sullivan e Paulo Massadas, eternizada no dueto entre Gal e Tim Maia, de 1985, a faixa de tom meloso virou uma espécie de hino romântico, que atravessa gerações — como a cena entre mãe e filha atesta. Gal, porém, não vivia só de passado. No mesmo show, recebeu os novatos Rubel e Tim Bernardes, ambos de 31 anos, cantores e pupilos com os quais ela gravou colaborações para seu último disco, Nenhuma Dor, de 2021 — e os quais chamava de “meus namorados”. Dona de uma voz irretocável e de uma deliciosa atitude transgressora, Gal exibiu, ao longo de seus quase sessenta anos de carreira, uma qualidade rara: a capacidade de se reinventar e experimentar, sem se prender a preconceitos.
“Eu adoro a vida, ela é preciosa. É um milagre.”
Gal Costa (1945-2022)
Tal dom a manteve ativa e em boa forma até quarta-feira 9, quando, inesperadamente, Gal Costa morreu em sua casa, em São Paulo, aos 77 anos. A agenda de shows da cantora estava lotada até 2023, com a turnê As Várias Pontas de Uma Estrela. A causa da morte não havia sido divulgada até o fechamento desta edição. Sabe-se que, dias depois da apresentação no Coala, Gal foi submetida a uma cirurgia de remoção de um nódulo da fossa nasal direita. Em seguida, cancelou as apresentações agendadas até o fim do ano. O choque de sua partida veio acompanhado de um luto profundo no meio musical. Ao lado de Elis Regina e de Maria Bethânia, Gal Costa foi uma das intérpretes mais expressivas e relevantes da história da música nacional.
Não se assuste, pessoa! As personas políticas de Gal Costa e Elis Regina na ditadura militar
Nascida em 26 de setembro de 1945, em Salvador, na Bahia, Maria da Graça Costa Penna Burgos dizia que seu contato com a música começou no útero: durante a gestação, sua mãe aproximava a barriga das caixas de som quando tocava música clássica. Incentivada a cantar desde a infância e profundamente influenciada pela bossa nova de João Gilberto, Gal fez sua estreia nos palcos aos 18 anos, em 1964, no Teatro Vila Velha, em Salvador, no espetáculo Nós, por Exemplo…, ao lado de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Zé e Bethânia. A parceria com os colegas baianos, acompanhados ainda de Nara Leão e Os Mutantes, culminou, em 1968, no disco histórico Tropicália ou Panis et Circensis, marco do tropicalismo. O movimento cultural, que refletia o período de ebulição criativa dos anos 60, em contraste com a repressão do regime militar, quebrou padrões estéticos nas artes visuais e na música. Seus representantes mesclavam ritmos antes inimagináveis juntos, do baião ao samba, passando pelo rock e suas guitarras elétricas. A trajetória ajudou a cimentar as bases experimentais da cantora, que, em carreira-solo, elevaria tal postura à enésima potência.
Gal Costa – Cd Gal Tropical – 1977
No auge da ditadura, enquanto os amigos Caetano e Gil estavam exilados, Gal segurou a barra por aqui com o show histórico Fa-Tal — Gal a Todo Vapor, no Teatro Tereza Rachel, no Rio de Janeiro, em 1971. Com maquiagem carregada e figurinos extravagantes, Gal encarnou uma espécie de Janis Joplin tropical e, em vez de discursos inflamados contra o regime, eternizou um doce e sensual protesto empoderado: sentada em um banquinho, de saia esvoaçante, tocava violão com as pernas abertas. Não poderia haver naquele momento atitude mais política do que essa. Depois, levou a censura a fazer o sinal da cruz com o álbum Índia (1973). A foto da capa focava diretamente na calcinha do biquíni da cantora — com direito a uma marquinha para lá de reveladora. O disco teve de ser embalado em um insosso envelope azul.
Tropicália ou Panis et circencis
A rebeldia se repetiria ao longo de sua carreira. Em 1984, Gal encomendou uma música nova ao colega Caetano, que, inspirado na figura da amiga, compôs a histórica canção Vaca Profana. Exatos dez anos depois, beirando os 50, Gal aprontou mais uma, apresentando-se com os seios de fora entoando a música Brasil, de Cazuza, cuja interpretação de Gal já havia sido usada como tema de abertura da novela Vale Tudo (1988).
A estrela usava seu corpo e seu comportamento como bandeira do feminismo e da liberdade sexual que carregava na sua vida pessoal: bissexual assumida, era discreta sobre seus relacionamentos. A partir do álbum Estratosférica (2015), foi vertida em ícone do movimento LGBTQIA+. Sem preconceitos musicais, gravou com Marília Mendonça, musa da sofrência sertaneja. No ano que vem, a cinebiografia Meu Nome É Gal vai narrar a história da baiana com Sophie Charlotte no protagonismo. Gal Costa foi muitas cantoras em uma só. Brilhou com trilhas mais alternativas e emprestou seu talento a canções de irresistível apelo pop — mas sem nunca abandonar sua alma de diva profana. Fará muita falta.
Publicado em VEJA de 16 de novembro de 2022, edição nº 2815
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