‘Cidade Perdida’ prova que filmes de ação já não são os mesmos
Ao apostar no humor, estreia reforça nova fase de um gênero que, para sobreviver, teve de partir para a autoironia
Os músculos definidíssimos de Alan enganam. Em uma ilha remota, o bombadão vivido por Channing Tatum tenta convencer um militar de elite (Brad Pitt) a levá-lo a uma difícil missão de resgate. Profissional de uma área deveras peculiar — Alan é modelo fotográfico de capas de livros eróticos —, o rapaz lista as habilidades pífias com que pretende enfrentar mercenários e um vulcão em atividade: ele tem um diploma em primeiros socorros e é exímio “crossfiteiro”. Alan se embrenha na selva para salvar Loretta (Sandra Bullock), autora da série literária que fez dele um sex symbol. Ela foi sequestrada por um ricaço (Daniel Radcliffe) obcecado pelo tesouro arqueológico citado no último livro da escritora, que adiciona cenas picantes a uma aventura à la Indiana Jones. Esse é só o começo da vasta lista de absurdos apetitosos de Cidade Perdida (The Lost City, Estados Unidos, 2022), em cartaz nos cinemas. Explosões, lutas elaboradas (outras nem tanto) e perseguições velozes ganham potência graças à efervescência de um roteiro que faz do humor não só um aliado, mas estrela da trama.
Ao flertar com a sátira, Cidade Perdida expõe a nova realidade do prolífico gênero de ação. Garantia de bilheterias portentosas num passado nem tão distante, o filão perdeu espaço para a avassaladora onda de super-heróis que inundou o cinema na última década. A concorrência é desleal. Os filmes de estúdios como a Marvel não só absorveram a pirotecnia e a testosterona das tramas de ação: como são fantasias escancaradas, têm licença para explorá-las das formas mais bombásticas e absurdas. Assim, cenas disparatadas se tornam razoáveis — ao contrário de um roteiro de ação tradicional, que precisaria manter algum pé na verossimilhança. A Marvel notou, ainda, que o delírio do faz de conta não era suficiente para tornar excessos plausíveis: o jeito era rir de si mesmo junto com o público.
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Antes de Cidade Perdida, o gênero de ação já dava mostras de que estava atento às mudanças de padrões, rendendo-se ao humor escrachado para libertar os diretores e roteiristas de amarras criativas. Tome-se a franquia Velozes e Furiosos. Ao assimilar a comédia, a série — que prepara seu décimo e alegado penúltimo episódio — ganhou sobrevida, aumentando sua popularidade e batendo 6,6 bilhões de dólares em bilheteria. Quando seus primeiros carros aceleraram, em 2001, a trama sobre rachas entre gangues em Los Angeles tinha uma forte veia policial e social. Mas desde seu sexto filme, em 2013, Velozes e Furiosos abandonou a seriedade na linha de largada. Como resultado, entregou cenas memoráveis — e sem compromisso com a realidade. No sétimo longa, o grupo rouba o carrão de um bilionário estacionado no 50º andar de uma das cinco enormes torres de Etihad, em Abu Dhabi. Quando Dom (Vin Diesel) acelera rumo à parede de vidro, ele escuta o colega Brian (Paul Walker) aos gritos: “Carros não voam!”. Mas, aqui, eles “voam”, sim — e o possante aterrissa no prédio vizinho e, em seguida, salta para um terceiro.
Box – Velozes e Furiosos – Coleção com 7 Filmes
Adaptar-se não era apenas uma opção, mas necessidade. Os orçamentos altíssimos dos filmes de ação demandam um retorno forte do público para que os estúdios não fiquem no prejuízo. O movimento foi acelerado, ainda, pelo êxodo do gênero rumo ao streaming. Ainda que a mudança não pareça ruim para o espectador, ela preocupa a indústria e mina a experiência: afinal, ver um carro voar entre prédios é mais arrebatador numa tela de cinema. Na outra ponta, a Netflix se esbalda. No ano passado, a plataforma lançou seu filme mais caro até o momento: Alerta Vermelho custou mais de 200 milhões de dólares. Com Gal Gadot, Ryan Reynolds e Dwayne Johnson, o The Rock — figura onipresente em tramas do tipo, por seu porte fortão e tino cômico —, a história sobre hilários ladrões de obras de arte se tornou o filme de maior audiência da Netflix: foram 364 milhões de horas assistidas. O sucesso notável garantiu duas futuras sequências.
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Como uma espécie de símbolo de resistência da era das telonas, Free Guy, também com Reynolds, chegou aos cinemas no meio da pandemia, em 2021, em vez de ir direto para o streaming, como esperado (no Brasil, ele está no Star+). Ambientado no mundo de um videogame, o longa saiu das salas no prejuízo, mas com moral alto — teve até uma indicação ao Oscar de efeitos visuais. Agora, é a vez de Cidade Perdida provar a eficácia da receita risada com pancadaria. Em sua primeira semana em cartaz nos Estados Unidos, o filme conseguiu a façanha de derrubar o novo Batman do topo das bilheterias. Até hoje, segue entre os mais vistos — um sinal de que o casamento explosivo entre adrenalina e humor veio para ficar.
Publicado em VEJA de 27 de abril de 2022, edição nº 2786
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