Cartas revelam como pai de Hitler ajudou a criar sua personalidade doentia
Novo livro mostra de que maneira o rabugento agente da alfândega austríaca influenciou na trajetória do líder nazista
Mais de 75 anos se passaram desde que Adolf Hitler, resignado com a invasão dos aliados, ingeriu veneno e em seguida disparou sua pistola contra a própria têmpora, em um bunker de Berlim, pondo um ponto-final na II Guerra, pelo menos no front europeu — o conflito perduraria algum tempo no Pacífico. Ao seu lado, naquele 30 de abril de 1945, estava a companheira Eva Braun, que morreu com ele. O casal teve os corpos incinerados por ordem do Führer, que provavelmente temia ser vilipendiado, como havia ocorrido com o ex-aliado Mussolini dois dias antes. Desde então, pesquisadores se debruçam sobre o artífice do conflito que ceifou centenas de milhares de vidas, incluindo 6 milhões de judeus, grande parte deles em campos de extermínio. Pouco se sabe sobre a juventude do homem que trouxe tamanho flagelo à humanidade. Revelado recentemente, um conjunto de cartas escritas por seu pai promete jogar luz nesse passado distante.
Hitler talvez seja a figura histórica mais investigada de todos os tempos. Há um incontável número de biografias sobre ele, além de um polêmico volume — o infame Minha Luta — que elaborou enquanto esteve preso, em 1924, depois de um golpe fracassado. Em todas as obras, no entanto, há um problema incontornável: a ausência de informações confiáveis da infância e adolescência, no interior da Áustria, antes de sua ascensão política. Agora, as brumas do tempo estão se dissipando graças a Roman Sandgruber, historiador austríaco que teve acesso a 31 cartas escritas em 1895 pelo pai de Adolf, Alois Hitler (1837-1903), uma figura autoritária cuja personalidade doentia certamente influenciou o futuro ditador. O material encontrado em um porão e doado pela tetraneta do destinatário, o empreiteiro Josef Radlegger, antigo proprietário da fazenda comprada por Alois, é a base de um livro recém-lançado na Europa, O Pai de Hitler —Como o Filho Virou Ditador, ainda sem tradução para o português.
Alois é um antigo alvo de estudos. Fez carreira como agente alfandegário e sua árvore genealógica é um mistério: era filho de mãe solteira, a criada Maria Schicklgruber, sem pai declarado em seu registro de nascimento. Uma versão levantada antes e depois da guerra dava conta de que seu pai biológico seria um judeu de sobrenome Frankenberg. A suspeita foi investigada, mas sem qualquer confirmação. Já adulto, Alois ganhou o sobrenome de Johann Georg Hiedler, que fora o marido de sua falecida mãe. A mudança da grafia Hiedler para Hitler pode ter sido proposital ou um equívoco de cartório.
O novo livro traça semelhanças entre os personagens e busca solucionar o enigma da fúria intestina de Hitler. “Alois certamente não era um bom pai”, disse a VEJA Sandgruber, professor emérito de história social e econômica da Universidade Johannes Kepler, em Linz. “Era autoritário, batia nas crianças e tinha pouco tempo para a família.” Nas cartas, o pai faz apenas três menções ao filho, então com 6 anos, tratando o futuro ditador como “o garoto”, sem qualquer afetuosidade.
Apesar de mal ter completado o ensino fundamental, Alois ascendeu socialmente. Era orgulhoso de sua condição de autodidata e tinha desprezo por acadêmicos — tal qual Adolf, que foi péssimo aluno e pintor sofrível. “Ambos superestimavam a si mesmos, consideravam-se gênios e foram anticlericais e nacionalistas”, afirmou o autor. “Na época, era comum que os filhos se tornassem uma versão mais radical do pai.” Adolf, ao que parece, levou essa característica ao extremo. Alois e o filho jamais tiveram boa relação, sobretudo devido à rebeldia e à mágoa do garoto, que se negava a seguir os passos do pai no setor público e sonhava em ser artista. Hitler sênior morreu em 1903, ao sofrer uma hemorragia enquanto tomava vinho — a bebida era um vício que o mantinha longe de casa. Adolf tinha 13 anos.
As cartas revelam ainda que o médico que cuidou da mãe de Adolf, Klara, era judeu, mas indicam que o ideal de superioridade ariana já era presente no lar dos Hitler. No setor alfandegário, havia muitos funcionários judeus e um sentimento antissemita generalizado. “Alois era um chefe severo e rabugento”, diz Sandgruber. Por omissão ou opressão, não há dúvidas: o pai de Hitler ajudou a florescer no filho o ódio que o levaria a perpetrar atrocidades inomináveis.
Publicado em VEJA de 10 de março de 2021, edição nº 2728