Broadway troca ‘O Fantasma da Ópera’ por ‘Wicked’ e encerra velha guarda
Há 35 anos em cartaz, o musical chegou ao fim neste domingo e selou a virada de uma nova página na história da Broadway
O fantasma aposentou a máscara, o lustre não mais ascendeu, o canto lírico cessou e a orquestra não precisa mais se afinar. Neste domingo, 16, O Fantasma da Ópera teve sua última apresentação na Broadway, um enorme evento que convocou a presença do compositor Andrew Lloyd Weber, astros do teatro americano — de Glenn Close à Sarah Brightman, a protagonista original — e centenas de fãs para dentro e fora do teatro Majestic, em Nova York. A celebração agridoce, no entanto, não velava apenas a obra em cartaz, mas toda uma velha guarda do teatro musical.
Esse dia era esperado desde o anúncio em setembro de 2022. Na época, a data era outra: fevereiro. Com o iminente fim, as vendas decolaram e o espetáculo estendeu sua estadia em 2 meses, mas não reverteu a decisão pelo encerramento, que chegou após 35 anos, 13.981 performances e a passagem de 6.500 profissionais. Fantasma carregava o recorde da maior temporada que a Broadway já viu. Agora, a jovem Wicked é a peça em cartaz com mais anos na manga: 19.
A little illumination! Our chandelier rises on Broadway for the final time 🌹 pic.twitter.com/GTmKacZYZO
— The Phantom Of The Opera (@PhantomOpera) April 16, 2023
As explicações para o final variam. A oficial, declarada pela produção, é que a venda não era mais o bastante para arcar com os custos da empreitada, mas sua extensa história abre amplo espaço para especulação. Desde 1986, quando estreou em Londres, O Fantasma da Ópera se consolidou como fenômeno mundial e deu origem a um filme hollywoodiano, mas acumulou tantos céticos quanto admiradores.
Para muitos, a história seria responsável por romantizar a relação perigosa entre o fantasma e a soprano Christine, sua pupila e paixão obsessiva. Ela é o motivo de seus crimes — inclusive a famosa queda do lustre da Casa de Ópera de Paris —, mas termina nos braços do herói Raoul. Outros apenas a consideram antiquada e de pouca conexão com o público de hoje. O criador Andrew Lloyd Weber, de Jesus Cristo Superstar, Evita e Cats, também passou a ser levado menos a sério com projetos malsucedidos e escândalos públicos. A pausa de 18 meses causada pela pandemia também não ajudou. Seja qual for o motivo, no entanto, não há dúvidas que a retirada do espetáculo das ruas de Nova York gera um impacto sísmico.
Fantasma da Ópera era o último espetáculo na Broadway com uma orquestra de seu tamanho. Eram, ao todo, 27 músicos — 11 deles, parte da equipe desde a primeira apresentação. O musical era fonte de estabilidade única para artistas do mercado nova-iorquino: membros do elenco de apoio e dos bastidores tinham contratos que garantiam sua participação até a performance final. Em produções mais recentes, é comum que a orquestra seja menor, esteja escondida atrás da coxia ou que nem exista. Em entrevista ao New York Times, Tino Gagliardi, presidente do sindicato Local 802, da Federação Americana de Músicos, afirma que a decisão de ter ou não um fosso com orquestra fica nas mãos dos produtores que “infelizmente, não estão sempre certos — os shows que tiveram as maiores temporadas são aqueles com as maiores orquestras.” Wicked reafirma essa máxima com seus 23 músicos, mas Hamilton, outro estrondoso sucesso, conta com apenas 10.
A tradição incrustada em Fantasma, porém, não está apenas no som. Como numa ópera antiga, o cenário é composto inteiramente por construções práticas e maciças — nada das artificiais telas de led. Pensado pela também figurinista Maria Björnson, ele passou por poucas alterações e carregou sua extravagância até o final. O que pode ser visto como mera opulência ou saudosismo, representa também a manutenção de condições para uma produção digna, sem se ater a estruturas sucateadas e temáticas passageiras, questões que pairam sobre muitos dos sucessos estreantes na Broadway que despertariam a ira do mascarado fictício.
Hoje, novas produções passam a ter o apelo jovem e bombástico de Wicked como referencial de sucesso máximo, mas tendem a tentar reproduzi-lo sem a mesma base. Meninas Malvadas: O Musical, Dear Evan Hansen e Be More Chill — todos da segunda metade da década passada — dispensam cenários, figurinos elaborados e orquestrações por composições pop radiofônicas, referências em excesso e apresentações minimalistas pensadas para refletir o mundo real (e repartir o lucro com menos colaboradores). Como resultado, as duas primeiras já se encerraram e a última tem data marcada para fechar em agosto. Sem consideração pelo extenso cânone da forma de arte, elas se preocupam primordialmente com texto e mensagem, baseados em signos de discussões atuais, que hoje se esgotam mais rápido que nunca. Se buscam não reproduzir a dita “cafonice” de uma tragédia operística como Fantasma, se perdem na cafonice muito pior de se pretenderem inteligentes e inovadoras por sua recusa ao formato da própria arte. É fácil, afinal, ignorar incômodos narrativos frente aos floreios vocais de uma magnética soprano e às palavras pensadas por um compositor capaz. Tal esforço não ocorre tão naturalmente quando não há muito para se encarar e a música genérica poderia estar em alguma parada do Spotify.
A tendência é comprovada pelo próprio Andrew Lloyd Webber, cuja mais recente produção, Bad Cinderella, sofre das mesmas mazelas. Uma tentativa desengonçada de revisão feminista do conto de fadas, o musical virou até mesmo piada nas redes graças ao marketing pouco convincente. No encerramento da primeira temporada em Londres, uma carta do compositor foi lida no palco, na qual ele chamou o musical de “um erro que custou caro”. Mesmo assim, a obra segue em cartaz na Broadway, diferente de Fantasma.
Não é impensável, no entanto, que o espírito desse legado de 35 anos não continue assombrando as ruas de Manhattan. Já em 2023, algumas produções buscam preencher seu vazio com grandes orquestras e temáticas clássicas, como as novas montagens de Sweeney Todd e Camelot. O Fantasma da Ópera permanece em cartaz em Londres, onde nasceu, e uma nova temporada americana está fadada a acontecer, seja daqui a poucos ou muitos anos. Versões revisadas de textos antigos não são estranhas à Broadway, e recentemente ganharam força com o sucesso do repaginado Funny Girl — que vem ao Brasil em 2023 —. Se serão para melhor ou pior, resta aguardar — mas os teatros de Nova York devem reforçar a segurança de seus lustres e manter os olhos abertos para qualquer sombra mascarada na escuridão.