Autora relata abuso na infância e conivência com pedófilo famoso
No devastador 'O Consentimento', a francesa Vanessa Springora narra violência do escritor que toda intelligentsia do país sabia ser pedófilo - e não via mal
Aos 13 anos, em 1985, Vanessa Springora era uma jovem parisiense como muitas da sua idade. Ouvia música e tinha seu grupinho de amigos na escola. Era filha de um casal separado e seu pai mostrava-se uma figura ausente. Como não tinha com quem ficar, frequentava eventos sociais com a mãe. Sempre solitária nessas ocasiões, despertou atenção de um homem adulto com credenciais supostamente irretocáveis. Então aos 49, Gabriel Matzneff era um escritor conhecido na França — país onde intelectuais podem alcançar fama de pop star. O novo amigo era charmoso, bonitão e foi apresentado à menina pela própria mãe. Mas logo se revelou um monstro. Por dois anos, Vanessa foi abusada psíquica e sexualmente pelo homem 36 anos mais velho. Essa história arrepiante é narrada no livro autobiográfico O Consentimento.
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Escrita ao longo de seis anos e com muitas interrupções devido a compreensíveis “desgastes emocionais”, a obra é o relato de como Vanessa foi dominada por Matzneff. Muito bem redigido, o texto tem um magnetismo que dificulta a interrupção da leitura. Apesar do tema grave, a narrativa mantém a fluidez. É chocante notar como a autora, hoje aos 48, descortina a conivência que protegeu o abusador na sociedade (leia a entrevista). Seu envolvimento com Matzneff é público, sua família e outras pessoas sabiam. Mas, à exceção de um amigo de escola, ninguém repreendia o bizarro relacionamento. Afinal, ela era a jovem namorada de um escritor excêntrico e deveria ficar feliz por isso. Subjugada por uma mente manipuladora, a vítima sentia-se “única” por ter sido a “escolhida” de alguém tão influente.
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Não faltavam sinais de que Matzneff era um abusador em série. Em 1974, ele lançou o ensaio Les Moins de Seize Ans (Os Menores de 16 Anos), uma defesa da pedofilia mascarada de manifesto a favor da liberdade sexual. O ensaio lhe garantiu notoriedade e impulsionou a venda de seus livros. Em 1977, o jornal Le Monde publicou uma carta aberta em defesa da abolição da idade de 15 anos para o consentimento sexual na França. O texto era assinado pela nata da intelligentsia do país, incluindo Gilles Deleuze, Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir, Roland Barthes e outros 65 nomes. Anos depois, os signatários desculparam-se pelo erro crasso — menos o autor da missiva, Matzneff. O pano de fundo da carta era um caso envolvendo três homens acusados de “atentado ao pudor sem violência contra menores de 15 anos”. O argumento central era o de que “se uma garota de 13 anos tem o direito à pílula anticoncepcional, seria uma contradição não admitir que ela tivesse também o direito de consentir relações sexuais”.
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No caso da adolescente Vanessa, ela não tinha meios de saber da fama de Matzneff, mas todos os demais sabiam. E ninguém fez nada. Mais tarde, ela iria descobrir que era só mais uma das muitas vítimas de Matzneff — cujas obras, quase todas baseadas em experiências reais, narram relações sexuais com menores de ambos os sexos. “Dormir com uma criança é uma experiência sagrada, um acontecimento batismal”, escreveu ele. É de embrulhar o estômago.
Vanessa tinha 17 anos quando assistia a um programa televisivo em casa, em 1990. O entrevistador Bernard Pivot ri ao falar das “jovens amantes” do “colecionador de gatinhas” Matzneff. Denise Bombardier, escritora canadense e também convidada do programa, diz que está “escandalizada com a presença de um personagem tão detestável, conhecido por defender e praticar a pedofilia”. Matzneff não perde a compostura e desdenha da intervenção, dizendo que “nenhuma das jovens reclamou da relação que mantinha com ele”.
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O gatilho para Vanessa escrever suas devastadoras memórias foi a revolta ao ver Matzneff ganhar o prestigioso Prêmio Renaudot, em 2013. Depois da enorme repercussão do livro na França, Matzneff, hoje aos 84, deixou o país e refugiou-se na Itália. Será julgado em setembro por apologia e defesa da pedofilia — seus crimes de abuso sexual já prescreveram. Ela diz que não escreveu o livro por vingança, mas para despertar a reflexão sobre o tema. “Não há razão para que um escritor possa transgredir a lei em seus escritos. Por que os livros e autores que fazem apologia da pedofilia escapam dessa regra?”, questiona Vanessa. Depois de O Consentimento, e de tudo o que mudou de lá para cá, dificilmente escaparão.
Publicado em VEJA de 17 de março de 2021, edição nº 2729
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