As milícias digitais que impulsionam o sucesso de estrelas como Anitta
Grupos poderosos de fãs são capazes de dinamitar velhas certezas sobre o que determina ou não a fama
Stan tinha devoção pelo rapper Slim. Vestia-se como ele e até prometeu batizar a filha, que nasceria em breve, com o nome da filha de seu ídolo. Mas, quando percebeu que não recebia do músico o mesmo amor que lhe dedicava, o rapaz tomou uma atitude drástica: bêbado, jogou seu carro de uma ponte, levando junto a esposa grávida. A tragédia fictícia narrada na música Stan (2000), do americano Eminem, é uma alegoria de como o fanatismo por um artista da música pode se tornar tóxico e fora de controle. Na era das redes sociais, porém, o personagem criado pelo cantor americano ganhou novo significado: agora despido de conotação negativa, o nome “Stan” passou a ser associado às pessoas que defendem com unhas e dentes seus ídolos nas batalhas on-line. Em 2017, inclusive, o honorável dicionário Oxford reconheceu em sua versão online o termo como um verbo que define as ações de “fãs excessivamente zelosos ou obsessivos com uma celebridade em particular”.
As estrelas do pop atual sabem bem o valor desses devotos: quando a força de mobilização é canalizada a seu favor, esses milhões de “stans” se convertem em milícias digitais poderosas, capazes de dinamitar velhas certezas sobre o que determina ou não o sucesso. O uso dos fãs como massa de manobra para se cacifar nas paradas ou causar barulho na internet foi levado ao estado da arte nos últimos anos por artistas do K-pop coreano, com o grupo BTS à frente. E logo incorporado como um arsenal obrigatório por um arco que vai dos americanos Justin Bieber e Lady Gaga às brasileiras Anitta e Juliette.
O efeito mais notório da nova relação dos artistas com seus fãs é a manipulação — às vezes no mau sentido — dos rankings musicais. Hoje, quando uma canção atinge o topo das paradas, não significa necessariamente que ela é um hit, mas que por trás desse resultado há um artista engajado e um fã-clube muito organizado. O novo single de Juliette, Cansar de Dançar, atingiu na última semana o primeiro lugar das músicas mais vendidas na loja do iTunes em 48 países graças ao esforço dos fãs.
A estratégia consistiu em pedirem doações por Pix (sim, chegamos ao ponto do sucesso negociado em Pix) de valores entre 1 e 10 reais. Depois, transferiram o dinheiro para pessoas espalhadas em vários países — nem sempre fãs da cantora — para comprar a música dela. A tática fez Juliette alcançar o primeiro lugar de vendas em localidades tão díspares quanto Botsuana e Uzbequistão. Já com Anitta, a tática foi semelhante à utilizada pela americana Taylor Swift. Os fãs organizaram stream parties, movimentos digitais que consistem em incluir uma música em várias playlists e ouvi-la sem parar nos serviços de streaming para ela subir nas paradas. Foi assim que o single Envolver chegou ao primeiro lugar do ranking global do Spotify e também da Billboard.
Born This Way The Tenth Anniversary (3 LP)
Anitta obteve um resultado tão acachapante que, da mesma forma que certo político que muito ela critica nas redes, levantou suspeitas de ter usado robôs para adulterar os números — algo improvável, segundo quem conhece esse mercado. “O artista que consegue controlar seus fãs detém o verdadeiro poder. Quando falamos de Anitta ou Juliette, estamos tratando de pessoas que sabem como usar sua audiência cativa”, analisa Arthur Fitzgibbon, presidente da ONErpm Brasil, plataforma de distribuição digital de música e engajamento de público. “Cada conquista é um troféu para os fãs e a vitória do artista também é dos fãs”, completa.
Que uma base fanática pode ser um patrimônio notável, é um fenômeno que se conhece ao menos desde o advento da beatlemania, nos anos 1960. Agora, contudo, essa relação passa por uma guinada radical. Se antes os fãs se limitavam a ligar nas rádios pedindo músicas ou assediavam artistas nos shows, nos tempos digitais eles se assemelham a um exército de vikings prontos para invadir redes, sites e perfis com fúria, ao mínimo comando de seu líder. Os fãs do BTS chegam ao cúmulo de ter um manual que ensina como tornar uma canção hit mundial. Entre as dicas está a de não tocar a música em sequência para não levantar suspeitas do uso de robôs; em vez disso, recomenda-se criar uma playlist e intercalar a nova canção com faixas de outros álbuns. A regra mais prosaica: não é necessário nem sequer ouvir a música, basta plugar um fone de ouvido e deixar tocando sozinho. É comum também ocorrer parcerias com fã-clubes de outros artistas no exterior, geralmente coordenadas no Twitter e Instagram.
As táticas são tão organizadas que os fãs de BTS ganharam o apelido de “Army” (exército), e hoje cada artista tem um nome para chamar seus fãs. Como Juliette é nordestina, seus seguidores se autodenominam Cactos; já os de Lady Gaga são os Little Monsters. O controle do artista sobre suas milícias tornou-se tão grande que Taylor Swift, após uma briga com a ex-gravadora, sentiu-se empoderada para regravar seus álbuns antigos e “desmonetizar” a antiga empregadora — tática que só deu certo porque ela pediu aos fãs que ouvissem só as novas versões, e eles cumpriram a ordem. Após o vazamento do último disco de Lady Gaga, Chromatica, os fãs ouviram as versões piratas, mas depois organizaram stream parties para não prejudicar financeiramente a cantora.
Fãs ajudam, ainda, a lustrar a imagem — ou detonar desafetos das estrelas. As furiosas seguidoras de Justin Bieber se organizaram para atacar Selena Gomez, ex do astro, no Twitter. Em represália, os fãs de Selena fustigaram a modelo Hailey Bieber, atual esposa do cantor. A despeito das brigas, esse poder também é utilizado para o bem. Os fãs de BTS uniram-se para apoiar o movimento Black Lives Matter. E foi graças aos protestos dos fãs que Britney Spears se livrou da opressiva tutela do pai. A máxima atribuída a Napoleão Bonaparte nunca foi tão atual: “Não há soldados ruins e, sim, maus comandantes”.
Publicado em VEJA de 1 de junho de 2022, edição nº 2791
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