Após quase vinte anos, pop inteligente do Tears for Fears está de volta
A dupla inglesa lança disco que fala com franqueza sobre a morte e ensina como fazer hits bem elaborados
Os últimos cinco anos de vida de Caroline, esposa do cantor e compositor Roland Orzabal, não foram fáceis. Alcoólatra, ela misturava bebida com remédios controlados. Como consequência, desenvolveu demência e a cirrose que a mataria em 2017. Orzabal acompanhou a esposa nessa angustiante via-crúcis. Atingido em cheio pelo drama, acabou ele próprio internado em uma clínica de reabilitação. Quando saiu, percebeu que Curt Smith, seu parceiro artístico de longa data no Tears for Fears, seria seu porto seguro para enfrentar a nova fase da vida. No primeiro álbum da dupla em quase vinte anos, o recém-lançado The Tipping Point, Orzabal canta sobre a tragédia com uma sinceridade desconcertante. “A vida é cruel, a vida é dura / A vida é louca, e então tudo vira pó”, diz a letra da faixa-título, escrita logo após a morte de Caroline.
Aliar poesia de primeira qualidade (e altamente pessoal) a melodias assoviáveis e radiofônicas sempre foi uma raridade na música pop ou no rock. Quando essa conjunção ocorre, dos Beatles ao Fleetwood Mac de Dreams, o resultado são canções imbatíveis. Os músicos do Tears for Fears têm lugar de honra nesse panteão. Ao longo de 41 anos, o duo britânico enfileirou hits atrás de hits sem abrir mão da inteligência, elegância e talento musical.
Tears For Fears: The Tipping Point
Orzabal e Smith formaram o Tears for Fears no início dos anos 1980, quando eram adolescentes. O nome foi inspirado na controversa Teoria do Grito Primal de Arthur Janov — que seduziu até John Lennon e Yoko Ono, e pregava se libertar dos traumas por meio de berros vigorosos. Logo de saída, em suma, o Tears for Fears foi na contramão do pop acéfalo daquela década. A dupla cantou suas dores em canções sentimentais, mas que não deixavam de ser grudentas. Eles lançaram apenas três discos entre 1983 e 1989. Mas, mestres em criar refrões antológicos, emplacaram no período arrasa-quarteirões como Shout, Mad World e Everybody Wants to Rule The World — até hoje, quatro décadas depois, são canções que ainda reverberam nas rádios e no streaming.
Everybody Loves a Happy Ending
No início dos anos 1990, divergências criativas fizeram com que a dupla se separasse. A ferida ficou aberta por nove anos, período em que os dois não se falaram. Na mesma época, Orzabal lançou dois esquecíveis álbuns que levavam o nome da banda e Smith tentou uma irrelevante fase-solo. Até que um perrengue forçou uma reaproximação: diante das dívidas deixadas por um antigo empresário, os dois tiveram de se falar de novo. Na conversa, constataram que haviam superado as desavenças, e que um dependia do outro (inclusive para voltar a faturar com a música). “Percebi quanto nossas colaborações eram valiosas e como ele era importante para mim. Parece óbvio, mas só então me dei conta das coisas maravilhosas que fizemos”, declarou Orzabal. Em 2004, saiu um álbum feito para marcar o final feliz da veterana dupla: Everybody Loves a Happy Ending, com direito a uma extensa turnê mundial e passagem até pelo Rock in Rio, no Brasil. Mas era um disco pálido.
A morte de Caroline adiou os planos de aposentadoria: o novo álbum nasceu como uma espécie de sessão de terapia para ambos. E mostrou que a poesia sincerona é, afinal, a grande arma da dupla: o disco contém faixas que lembram seus melhores momentos, como My Demons, com seus sintetizadores e arranjos infalíveis. O universo devolveu em dobro a inspiração: depois de 23 anos fora do top 10 da revista Billboard, a dupla voltou ao ranking no oitavo lugar, ensanduichada entre o pop punk de Olivia Rodrigo e Avril Lavigne. As estrelas do pop de hoje têm muito a aprender com os sessentões do Tears for Fears.
Publicado em VEJA de 16 de março de 2022, edição nº 2780
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