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Ana Paula Araújo: Fiquei cara a cara com estupradores

A jornalista de 48 anos conta em livro como foi estar entre algozes e vítimas de abusos sexuais

Por Ana Paula Araújo
Atualizado em 4 jun 2024, 15h10 - Publicado em 2 out 2020, 06h00

A violência sexual faz parte da vida de todas as mulheres em algum grau. Se você não foi vítima, conhece quem foi ou tem medo de ser. Eu mesma vivi situações não exatamente graves, mas que até hoje me causam constrangimento ao falar. Quando estava na faculdade e morava com uma tia na Vila da Penha, subúrbio do Rio, cochilei num ônibus. Fui acordada com as mãos de um homem na minha coxa, quase tocando minhas partes íntimas e com o rosto colado ao meu, pronto para me agarrar. Em pânico, só consegui dizer: “Tira as mãos de mim”. Ninguém fez nada. Ele se assustou com a reação, se levantou, mas seguiu me encarando. Saltei num ponto antes do meu e saí correndo. Em outra ocasião, já como repórter, estava em uma quadra de escola de samba lotada quando um homem se aproveitou para dar aquela passadinha de mão. Episódios semelhantes se repetiram em festas e boates e, sim, senti como uma brutalidade.

Falando assim, tem gente que pode pensar: bobagem. Pois não é. E, em casos de crimes como assédio e estupro, a vítima ainda se sente culpada. Isso é estimulado em redes sociais pela covardia dos haters, aquela turma que condena pessoas que tornam seus dramas públicos, como a atriz Giselle Itié, estuprada pelo primeiro namorado, e o humorista Marcelo Adnet, que sofreu violência sexual na infância. Mas aos poucos, cada vez que o assunto vem à tona, porque uma mulher tem a coragem de denunciar e cobrar punição, outras ganham voz. Foi o que me fez querer mergulhar fundo nesse universo e escrever um livro (Abuso — A Cultura do Estupro no Brasil) sobre esse mal encoberto pela vergonha no país. Nos últimos quatro anos, entrevistei mais de 100 pessoas, de vítimas a estupradores, de policiais a agentes de saúde e especialistas. Visitei presídios, como o de Charqueadas, no Rio Grande do Sul, e o Complexo de Bangu, no Rio, e me embrenhei em centros de menores infratores.

Saí destruída de vários desses encontros. Um dos que mais me marcaram foi com uma menina de 10 anos, a idade da minha filha à época. Ela estava abrigada em um conselho tutelar do Pará. Durante um ano, o pai a estuprou e dizia que mataria sua mãe caso contasse a alguém. Mesmo sendo alvo de tamanha violência, ela era de uma doçura impressionante. Assim que saiu da sala, desabei e chorei. Fiquei ainda bastante impactada com mais duas histórias, que comprovam bem a tese de que os abusos sexuais independem de classe social e idade da vítima e não têm hora nem lugar. Estive com uma estudante carioca que foi atacada por um maníaco às 8 horas da manhã. A polícia conseguiu prendê-­lo e descobriu que, aparentemente, tinha uma vida insuspeita: era sargento da Aeronáutica, casado e pai de um bebê. Falei também com uma mulher que foi violentada pelo próprio marido, situação que acaba sendo mais complicada de provar. Ela foi forçada a manter relações sexuais enquanto enfrentava uma gravidez de risco. Teve uma hemorragia.

Às vezes, quando me dava conta, estava no meio da notícia, literalmente. Uma vez, participei do resgate de duas meninas, de 15 e 16 anos, na Ilha de Marajó. Elas eram abusadas pelo pai. Contaram para mim depois, por mais inacreditável que seja, que ele havia voltado para casa. Diante dos estupradores, senti muita raiva. Fiquei cara a cara com um homem que acumulava mais de 1 000 anos de condenação, e ainda dizia que tudo não passava de armação, e com um segundo, que era conhecido como o maníaco do Escort: ele negava os crimes, mas se vangloriava dos feitos com os outros presos. Nada, porém, me chocou mais do que o relato de um jovem de 17 anos, detido em um centro de ressocialização, que contou friamente ter comandado o estupro coletivo de uma grávida e degolado o namorado dela. Esse tipo de atrocidade não cabe no mundo em que vivemos.

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Depoimento dado a Sofia Cerqueira

Publicado em VEJA de 7 de outubro de 2020, edição nº 2707

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