Absolvidos mas cancelados: a amarga fatura dos casos Kevin Spacey e Hammer
Embora inocentados, astros pagaram caro por denúncias de supostos abusos sexuais - e isso é péssimo não só para eles, mas para a luta contra essa chaga
Nos últimos meses, dois resultados de investigações a respeito de processos de abuso sexual chamaram atenção. Em junho, a Justiça de Los Angeles absolveu o americano Armie Hammer das alegações de má conduta sexual — com histórias que incluíam supostas práticas de sadismo, quebra de consentimento e até canibalismo — que pairavam sobre o astro de sucessos como O Agente da U.N.C.L.E (2015) e Me Chame Pelo Seu Nome (2017). Nesta quarta-feira, 26, o britânico Kevin Spacey, já premiado com o Oscar e protagonista da cultuada série House of Cards (Netflix), foi inocentado por um tribunal de Londres, por falta de provas, das nove acusações de abuso de jovens atores que ainda o atingiam — no ano passado, ele já havia sido absolvido de outro processo nos Estados Unidos.
Em ambos os casos, são desenlaces importantes de dramas que despertaram furor nas redes sociais e em boa parcela da imprensa quando vieram à tona: os dois astros foram cancelados e execrados publicamente, perderam trabalhos (Spacey chegou a ser “apagado” das cenas de um filme de Ridley Scott) e viram suas carreiras em Hollywood e suas vidas pessoais irem pelo ralo. Agora, eis que Spacey e Hammer provaram não dever nada à Justiça. Mas é tarde: a fatura já chegou, e é amarga não só para eles.
A triste ironia que abateu Hammer e Spacey se deve, claro, a um fenômeno bem conhecido: a máquina de moer reputações das redes sociais, em que as pessoas — famosas ou nem tanto — são condenadas por meio do chamado cancelamento e de outros expedientes com a lógica dos justiçamentos sumários. Condena-se sem pestanejar, em nome de boas causas — no caso, demandas justíssimas e necessárias, como a luta contra o abuso moral e sexual, ou a opressão feminina. Se mais adiante a denúncia não se revelar procedente, o barulho já estará feito — e a vida dos atingidos, como bem sabem Spacey e Hammer, estará para sempre manchada.
Mas os astros talvez não sejam, por incrível que pareça, os maiores perdedores. Quando uma injustiça assim ocorre, a própria batalha de movimentos como o #MeToo acaba atingida. O ativismo e as guerrilhas virtuais podem alegar, não sem razão, que o sistema judicial favorece que casos de assédio acabem quase sempre sem a punição dos homens abusadores. Diversas acusações flagrantes contra Spacey, por exemplo, nem sequer foram a julgamento porque os casos prescreveram. Mas acreditar que o tribunal da internet possa estar acima da própria Justiça é um devaneio típico de rompantes autoritários — e, portanto, perigosíssimo.
Um dos maiores dilemas dos tribunais na atualidade é justamente a análise de denúncias de assédio sexual. Por natureza, esses casos já são altamente complexos, pois normalmente a vítima está sozinha na cena com o abusador – e, por isso, na maior parte das vezes, tem apenas a sua palavra para tentar comprovar o crime. Não por acaso, promotores e juízes atribuem um peso grande a esse relato. Só que a situação se complica quando o depoimento da suposta vítima passa a ser refutado com provas importantes dentro dos autos. Nos casos midiáticos, como o de Kevin Spacey, os detalhes da defesa acabam sendo apresentados apenas quando o suposto criminoso já foi condenado nos tribunais da imprensa e das redes sociais. Aí o prejuízo nas carreiras e nas vidas pessoais dos acusados será quase irremediável.
Há um consenso na Justiça brasileira de que o assédio sexual não pode passar impune – e esse rigor é realmente necessário diante da realidade do país, na qual as mulheres continuam sendo vítimas constantes de abusos. É igualmente salutar a disposição cada vez maior de se levar à polícia esse tipo de denúncia, algo ainda muito difícil por conta de uma estrutura machista que provoca enormes constrangimentos a quem procura por reparação. O desafio adicional que começa a se impor dentro do contexto das investigações de assédio sexual diz respeito às denúncias falsas. Trata-se de um tema muito importante para ser tratado de forma leviana no tribunal das redes sociais. O mesmo rigor na apuração das denúncias tem que ser aplicado no desmascaramento das falsas acusações. Caso contrário, uma luta importante na defesa das mulheres vítimas de ataques pode ficar completamente desmoralizada.