A tática para manter em evidência artistas mortos e bandas desaparecidas
Na era do streaming e das redes sociais, está em alta uma nova e lucrativa ciência do showbiz
David Bowie morreu em 2016, mas continua “produzindo” novidades em meio à pandemia de coronavírus, em 2020. Seus fãs são bombardeados com lançamentos de discos, livros e singles. Os perfis de Bowie nas redes sociais revelam-se tão ativos quanto os de qualquer influencer de carne e osso: no Facebook ou no Instagram, fotos raras e informações relacionadas ao cantor são publicadas em notável volume, dando aos seguidores a sensação de que ele nunca partiu. O exemplo mais recente de seu excelente vigor além-túmulo é o álbum ChangesNowBowie, com nove músicas gravadas em 1997 e que chega às plataformas digitais nesta sexta-feira, 17. O single Repetition encontra-se disponível em serviços de streaming desde a semana passada e contabilizou nos primeiros dias quase 300 000 audições no Spotify.
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Bowie é um caso eloquente, mas nem de longe solitário, em uma seara altamente lucrativa: a dos artistas mortos e bandas desaparecidas que, graças à atuação engenhosa dos responsáveis por seus espólios, permanecem no ar como marcas de potencial inesgotável. A perda dos ídolos costuma ter, em curto prazo, um efeito certo: eles vendem e são escutados mais do que nunca. Horas após a notícia da morte de Bowie, as vendas de seus álbuns cresceram 5 000%, segundo levantamento feito na época pela Nielsen Music. Semanas depois, no entanto, o frisson tende a passar. É quando entra em cena uma nova ciência do entretenimento, voltada para preservar esses nomes não só vivos como competitivos.
Desde ao menos o precursor do rock Elvis Presley, as gravadoras, empresários e herdeiros vêm extraindo ganhos com estrelas da música que já não estão entre nós. Ao longo das décadas, essa indústria foi se tornando mais especializada — e despudorada. Um exemplo é o rapper Tupac Shakur. Morto em 1996, ele “inaugurou” uma bem-sucedida trajetória póstuma, que foi de álbuns à sua ressurreição no palco como um holograma. Com o advento da internet, os espólios agora se desdobram em maneiras ainda mais criativas de manter seus defuntos em evidência.
Hoje, ter presença constante em redes sociais é essencial para conservar a imagem circulando — e, com isso, atrair mais ouvintes nas plataformas de streaming, por exemplo. Bowie conta com 1,4 milhão de seguidores no Instagram. Seu perfil posta, em média, uma nova foto a cada dois dias. Curiosamente, ele é seguido por outro morto famoso, John Lennon, que ostenta 1,7 milhão de seguidores e também publica com a mesma frequência. No Instagram, ambos não divulgam apenas “novidades” da carreira. Uma das postagens recentes de Lennon dava feliz aniversário ao filho Julian.
A separação de Lennon, Paul McCartney, George Harrison e Ringo Starr completou cinquenta anos no último dia 10. Os Beatles nunca saíram do imaginário das pessoas, mas recentemente andam tão falados que as notícias a respeito da banda parecem ter pernas próprias. Na Inglaterra, um leilão de memorabilia acaba de render o equivalente a mais de 4 milhões de reais. Em breve, será lançado o documentário The Beatles: Get Back, que reconta a gravação do álbum Let It Be, em 1969. O filme terá direção de Peter Jackson, de O Senhor dos Anéis, e poderá esclarecer quanto as rusgas nas gravações aceleraram o fim da banda. Individualmente, John Lennon e George Harrison — os dois beatles já falecidos — também viraram tema de documentários. No Instagram, Harrison mantém uma conta bastante ativa, embora sem tantos seguidores quanto Lennon — são 691 000.
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Além da força natural de sua obra — o fator mais óbvio para um artista conservar-se relevante mesmo décadas após a morte —, a harmonia entre os herdeiros e a parcimônia na divulgação de novos materiais revelam-se fundamentais no processo. “Só de o herdeiro não atrapalhar, ele já faz muito para manter a imagem do artista viva”, diz o produtor João Marcello Bôscoli, filho de Elis Regina, morta há 38 anos. Astros como Tim Maia e Raul Seixas não alcançaram até agora a glória eterna em razão de quedas de braço entre familiares.
Elis, em contraponto, é um excelente exemplo brasileiro de resiliência no além-túmulo. Nos últimos anos, a cantora permaneceu em destaque com o lançamento de duas biografias, um livro de memórias sobre ela assinado por Bôscoli, uma série de TV, um filme, um musical e o resgate de seus discos antigos. No seu caso, porém, a família preferiu não criar perfis oficiais nas redes. “Acharia estranho se nós, os filhos, administrássemos um perfil da minha mãe e ela desse parabéns pelo meu aniversário”, afirma Bôscoli. No exterior, o espólio do cantor Prince, morto em 2016, segue receita idêntica. O peso de sua obra é incontestável, e não há divergências familiares a impedir a divulgação de seu trabalho (sua irmã, Tyka Nelson, é a única herdeira). O mais importante: Prince deixou um vastíssimo baú com material inédito. Se feito com parcimônia, o lançamento desse acervo renderá novidades sobre Prince por várias gerações.
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Com espólios tão antenados, Prince e Bowie se impõem como novos gigantes de um mercado com velhos campeões, como Bob Marley (só o disco Legend, lançado pouco depois de sua morte, em 1981, vendeu 28 milhões de cópias) e Freddie Mercury. Morto em 1991, vítima de aids, o astro do Queen sabia que seu fim se aproximava e, como mostrado em 2018 na cinebiografia Bohemian Rhapsody, dedicou-se a compor músicas inéditas para a posteridade. Em 1995, seu grupo lançou um disco com parte dessas canções. O guitarrista Brian May e o baterista Roger Taylor continuam fazendo excursões com a marca Queen, mantendo Mercury em voga (e faturando com seu carisma, é claro).
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Há casos, no entanto, em que a produção do artista é tão valorosa que nem brigas familiares ou controvérsias são capazes de ofuscá-la. Michael Jackson passou a vida em desavença com os irmãos. Após sua morte, em 2009, descobriu-se que ele estava atolado em dívidas, estimadas em 500 milhões de dólares. A administração do espólio do astro está conseguindo quitar os débitos e, agora, sua obra produz lucros para os três filhos. Em 2016, Jackson faturou 825 milhões de dólares, o maior valor anual já acumulado por um artista morto, parte em razão da venda de metade de seus direitos sobre o catálogo das músicas dos Beatles. Em 2018, o espólio de Jackson vendeu à Sony sua participação societária na gravadora EMI, arrecadando 400 milhões de dólares naquele ano. Desde a morte, ele já rendeu 2,1 bilhões de dólares — o equivalente, segundo a revista Forbes, ao valor que amealhou em 45 anos de carreira. O show não pode parar — nem quando seus protagonistas já tiverem ido embora faz tempo.
Publicado em VEJA de 22 de abril de 2020, edição nº 2683
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