A família que não morre
A série ''The Romanoffs' mostra o fardo e o fascínio de ser um descendente da dinastia que governou a Rússia por 300 anos e foi executada pelos bolcheviques
Nos livros de história, o príncipe Alexei emerge como símbolo do ocaso dos Románov. Doente e melancólico, ele ilustra o futuro abruptamente interrompido da família que governou a Rússia por 300 anos e sucumbiu ao turbilhão revolucionário que varreu o país em 1917. Junto com o pai, o czar Nicolau II, a mãe, a czarina Alexandra, e as irmãs, Olga, Tatiana, Maria e Anastásia, Alexei foi executado de forma bárbara pelos bolcheviques. No primeiro episódio da série The Romanoffs (assim o sobrenome russo é às vezes grafado em inglês), Alexei é um personagem plebeu desprovido de substância trágica: um cãozinho mimado. As circunstâncias, no entanto, estabelecem uma associação imediata com o príncipe assassinado. Sua dona, Anushka (Marthe Keller), é descendente dos Románov que, aparentados da família real, conseguiram fugir da Rússia depois da revolução. Divide com o bicho a solidão de um apartamento forrado de relíquias na Paris dos dias atuais. Há um notório ovo de Fabergé na estante, do qual Anushka se gaba diante de sua nova cuidadora, a muçulmana Hajar (Inès Melab). Com horror da “terrorista” que seu único sobrinho enviou para cuidar dela, Anushka enumera feitos militares da civilização europeia contra o Islã ao longo dos séculos para explicar por que só uma representante da superioridade ocidental como a Casa Románov poderia ter uma preciosidade assim em casa. Enquanto isso, ela janta na mesma mesa que seu cão.
A nova série confirma a ascensão da Amazon, com sua plataforma Prime Video, como respeitável rival da Netflix no mercado global de streaming. A empresa trilionária de Jeff Bezos começou devagarinho, mas botou de vez os tanques na rua com a ação Jack Ryan e, agora, com a excelência criativa de The Romanoffs. Com graça e sagacidade, a série não nega a grife de Matthew Weiner, criador de Mad Men. Há um oceano de distância entre os cenários do sucesso da AMC, ambientado no mundo da propaganda nova-iorquina dos anos 60, e seu novo trabalho. Cada um dos oito episódios de The Romanoffs apresenta uma história com diferentes personagens (todos fictícios) e explora conexões entre o mundo contemporâneo e a história da dinastia russa. Na essência, porém, Weiner mantém-se fiel às questões que abordava em Mad Men: a ilusão inebriante de carregar um título de poder; a doce mas inexorável poesia da decadência; e o rastro destrutivo do mau comportamento masculino nos negócios de alcova — em qualquer tempo.
No lançamento de The Romanoffs, Weiner disse que a série pretendia trazer “alegria” ao mundo “em tempos irritantes e divisivos”. Os dois episódios já disponíveis — além do terceiro, a que VEJA teve acesso — de fato trazem alegria sem fim como produtos de entretenimento. De quebra, contêm sutis pílulas políticas sobre a intoxicante atmosfera de intolerância que assola do Brasil à Europa. The Violet Hour, sobre a relação entre a velha princesa Anushka e sua criada muçulmana, examina a ironia de descobrir que o chamado “outro” (obviamente, a cuidadora islâmica) não é a tenebrosa ameaça à linhagem que a princípio tanto aterrorizara a patroa, e sim a chave para sua renovação.
Na segunda história, The Royal We, Michael (Corey Stoll) é um descendente americano dos Románov, mas não está nem aí para isso. Medíocre e imerso num casamento em crise, ele usa a participação no júri em um caso de assassinato como pretexto para correr atrás de um rabo de saia, enquanto despacha a esposa, Shelly (Kerry Bishé), para um coruscante cruzeiro marítimo que reúne parentes dos Románov. Por vias inversas, prova-se que sobrenome pomposo não é antídoto contra baixa autoestima.
A terceira trama de The Romanoffs oferece uma visão surreal do que o fascínio por uma dinastia traz à cabeça. A americana Christina Hendricks (a secretária sensual de Mad Men) é Olivia, estrela de cinema que vai a um rincão da Áustria para gravar uma série de TV sobre os Románov, no papel da czarina Alexandra. Chegando lá, descobre-se numa roubada. A diretora Jacqueline (a francesa Isabelle Huppert) é sádica e maluca. Assustada, Olivia se envolve com Samuel (Jack Huston), ator que faz o papel do místico e conselheiro caviloso Rasputin no programa. Como num filme de terror, as histórias que cercam os Románov passam a assombrar o set de filmagem. “A certa altura, meu personagem começa a se confundir com o próprio Rasputin, inclusive no apetite sexual. São figuras tão fortes que é difícil livrar-se delas após gravar”, disse Jack Huston a VEJA. Se no episódio inicial a suíça Marthe Keller está radiosa como a velha princesa, aqui o show é de Christina Hendricks, Isabelle Huppert e do próprio Huston. “Nós nos divertimos demais. Isso faz diferença”, diz ele.
The Romanoffs renova o apelo pop de um capítulo trágico da história. Em 17 de julho de 1918, os bolcheviques decidiram que era hora de juntar a “bagagem” e efetuar a “limpeza da chaminé”. Por trás dos códigos, estava em marcha uma operação monstruosa. A “bagagem” eram seus prisioneiros da família imperial russa. “Limpeza da chaminé” era o desenlace temido pelos Románov. Em um porão, eles foram executados a tiros e golpes de baioneta. Seus corpos foram jogados em um fosso, cobertos de ácido, e ficaram escondidos até 1991, com o fim da União Soviética. Só então cientistas enterraram de vez teorias como a de que a princesa Anastásia teria sobrevivido ao massacre. Ela morreu mesmo, mas sua família acaba de ganhar mais uma vida.
Publicado em VEJA de 24 de outubro de 2018, edição nº 2605