‘A Dança da Água’ revê escravidão com lances sobrenaturais
Roteirista dos quadrinhos do Pantera Negra, Ta-Nehisi Coates narra trama ágil na qual a memória vira uma arma
Em A Dança da Água, primeira obra de ficção do ensaísta negro americano Ta-Nehisi Coates, lembrar é vivenciar cada aguilhoada do horror da escravidão nos Estados Unidos. Ambientado sobretudo em uma plantação decadente da Virgínia no século XIX, e centrado na chaga histórica que marca a “engrenagem” da nação americana, o romance tem como narrador um jovem cativo que conhece de perto a dor e a incompreensão. Quando Hiram Walker fala sobre a filha de Thena, a mulher que o criara desde pequeno, a velha escrava da propriedade de Lockless o amaldiçoa. Ele compreende. “Eu já sabia quanto o passado pesa”, escreve. “Sabia de homens que tinham segurado as próprias esposas para serem chicoteadas. Sabia de crianças que tinham visto esses homens segurarem suas mães. Sabia de crianças que chafurdavam na lama com os porcos”, completa. Pior de tudo, Hiram sabia como a lembrança dessas coisas transformava as vítimas da escravidão, “como não conseguíamos escapar delas, como se tornavam uma parte horrível de nós”. Não por acaso, ele chega praticamente às últimas páginas incapaz de uma lembrança da própria mãe, vendida ainda em sua primeira infância.
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A narrativa de A Dança da Água é veloz, e é difícil não ligar esse dado às credenciais de seu autor. Coates, de 45 anos, não é só um ensaísta de respeito: foi o roteirista da série de quadrinhos que alguns anos atrás resgatou a figura do Pantera Negra, herói negro surgido nos anos 60 e celebrado no sucesso da Marvel no cinema em 2018. Em sua estreia como romancista, o tema fundamental é a lembrança — que espreita Hiram a cada página. Afinal, Hiram é filho do proprietário de Lockless, o que torna a violência contra sua mãe e a brutalidade de sua ausência ainda mais acentuadas. Levado para trabalhar como criado de seu meio-irmão, o protagonista revela uma memória fotográfica quase miraculosa, uma sensibilidade singular para as situações humanas e uma inteligência invulgar. Após um acidente fatal, todos esses elementos convergem para a metáfora central do romance: a memória e a sensibilidade de Hiram revelam-se muito mais que traços marcantes de um personagem qualquer. O leitor está diante de um poder verdadeiramente sobrenatural, que se faz atuante na presença da água, e é ativado pelas memórias do detentor de tal força. Incapaz de compreender o próprio dom, Hiram vive um longo despertar: o desejo de liberdade, a necessidade da fuga, o cativeiro redivivo, até que encontra finalmente as forças da Clandestinidade, isto é, a resistência abolicionista, e o “Underground Railroad” — as históricas rotas de fuga dos escravos do Sul rumo aos estados do Norte, longe do alcance da escravidão.
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É então que o romance ganha dimensões de narrativa de aventura – o leitor sente, frequentemente, que está acompanhando um bom filme de ação, em que as estratégias para a libertação dos escravos e os poderes sobrenaturais de Hiram estão prestes a sair das páginas como se fossem efeitos especiais. É assim que a “condução”, essa capacidade quase mágica de abrir uma fenda no espaço e no tempo rumo à liberdade, ganha corpo na narrativa. Inteiramente dependente da memória, a “condução” é a contraparte vitoriosa do sofrimento da lembrança. Se a memória pode ser dolorosa, ela é igualmente identidade e liberdade, e Coates realiza essa transformação alterando também o registro da escrita. Há méritos nisso, sem dúvida. É possível sentir o talento de Coates como ensaísta premiado nas falas dos personagens, que se pronunciam como heróis conscientes de seus dilemas. Mas, ao fortalecer as façanhas deles, a elaboração literária sai prejudicada. Talvez o ensaísta Coates não consiga submergir para que o ficcionista mostre a que veio. Ainda assim, seu livro é um belo esforço de traduzir em palavras uma dor que parece além da compreensão humana.
Publicado em VEJA de 28 de outubro de 2020, edição nº 2710
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