A ascensão das joias de inspiração surrealista
Fazem sucesso as peças inspiradas na escola artística do início do século XX — elas combinam com a busca de uma via de escape para as restrições da pandemia
O surrealismo, definiu o escritor francês André Breton (1896-1966), nasceu com o objetivo de mesclar “as condições contraditórias de sonho e realidade em uma suprarrealidade”. Partindo dessa premissa, os integrantes do ruidoso movimento artístico que floresceu na primeira metade do século passado na Europa se esmeraram em introduzir figuras triviais do cotidiano em condições e ambientes inesperados, provocando uma sensação de estranhamento levada a extremos pelo espanhol Salvador Dalí (1904-1989), pelo belga René Magritte (1898-1967) e pelo alemão Max Ernst (1891-1976), entre outros grandes nomes da época. Ao questionar os conceitos do que é real e ampliar seus limites, esse grupo de artistas pretendia criar uma via de escape para as restrições do dia a dia — tudo a ver com sentimentos predominantes na sociedade atual, atropelada pelos rigores da pandemia. Faz sentido, portanto, que agora, um século depois de seu surgimento, o surrealismo venha servindo de inspiração para coleções de joias assinadas por designers ao redor do mundo — entre elas a italiana Delfina Delettrez, as irmãs americanas Morgan e Jaclyn Solomon e a carioca Paola Vilas, autora de peças que ilustram esta reportagem.
Com lojas no Rio e em São Paulo e tendo as atrizes Paolla Oliveira e Taís Araujo entre as clientes, a joalheira Paola explica que sua arte se concentra na expressão feminina — daí a variedade de peças em torno de pequenos corpos esculpidos em detalhes. “Sempre pensei no desenvolvimento das minhas obras como uma maneira de celebrar o lúdico e o inconsciente”, diz a joalheira, de 27 anos. A precisão das formas e do acabamento pode ser observada de todos os ângulos, como no bracelete-estátua, joia elaborada para sua primeira coleção e que se encontra até hoje entre suas preferidas. Os brincos, pulseiras e colares de Paola são feitos de prata com banho em ouro 18 quilates, custam entre 700 e 4 000 reais e estão à venda também na França e no Reino Unido. “A maioria das minhas clientes está interessada no mercado da arte e do design, mais do que no setor joalheiro”, diz ela, que não deixou de reeditar em anel o célebre olho presente em obras de Dalí e Magritte. A imagem foi imortalizada, na forma de joia, em um broche desenhado pelo poeta Jean Cocteau e executado pela estilista Elsa Schiaparelli no auge do movimento surrealista.
Schiaparelli, estilista de sucesso em Paris, transportou para a moda os conceitos e as esquisitices do surrealismo — ficou célebre seu chapéu em formato de sapato. O atual estilista da casa, o americano Daniel Roseberry retomou, em suas duas últimas coleções, a tradição da criadora da marca, tanto nas roupas quanto nos acessórios. A repercussão de seus desfiles deslanchou a proliferação de joias surrealistas que se vê agora. Formas surreais aparecem nas peças elaboradas pelo designer Prabal Gurung para a japonesa Tasaki, uma das maiores produtoras de pérolas cultivadas do mundo. Gurung, que nasceu em Singapura e foi criado no Nepal, desenvolve com talento uma inusitada parceria da comportada pérola com a transgressão surrealista — como no anel Danger, em que as esferas brancas são encimadas por “dentinhos” pontiagudos imitando uma planta carnívora. Até a austríaca Swarovski, rainha das semijoias ultrabrilhantes, lançou neste ano a coleção Surreal Dream, com gargantilhas, pulseiras e outros acessórios no formato de olhos entristecidos por uma lágrima de cristal. “São peças alternativas para a mulher que não se adapta ao aspecto mais clássico da joalheria”, diz a consultora de estilo Tathiana Santos, professora do Centro Universitário Belas Artes, em São Paulo.
A aplicação de conceitos do surrealismo em brincos, pulseiras e adornos em geral foi parte integrante dos primórdios do movimento. Além das criações elaboradas pela italiana Schiaparelli, artistas como Dalí e o fotógrafo Man Ray (1890-1976) se aventuraram na elaboração de ornamentos como broches na forma de lábios cravejados de rubis e dentes de pérola e brincos enormes. A reedição da sociedade entre o surreal e o design agora é produto de uma época em que os indivíduos buscam maneiras de se diferenciar uns dos outros. “Nosso tempo favorece tudo que é alternativo e diverso. Há uma celebração da subjetividade e um grande desejo de ser único, justamente a porta de entrada para as referências surrealistas”, diz João Braga, professor de história da moda da Fundação Armando Alvares Penteado (Faap). Sem falar na atração que o uso de uma joia incomum exerce nas pessoas que vivem para postar fotos nas redes sociais. Nesse universo, surrealismo na forma de brincos é curtida na certa.
Publicado em VEJA de 30 de setembro de 2020, edição nº 2706