“Vou quebrar mais barreiras”
Manu Aguiar, de 29 anos, superou a paralisia cerebral para conquistar o diploma universitário
Quando a bolsa da minha mãe estourou, às 10 horas da manhã daquele janeiro de 1993, ela correu para um hospital público do Rio de Janeiro, onde morávamos. O parto, porém, só foi feito às 23 horas, porque não havia leitos disponíveis. E as consequências vieram. A falta de oxigenação afetou minha coordenação motora e minha fala, mas o diagnóstico mesmo só veio um ano mais tarde. Tínhamos nos mudado para Curitiba e, um dia, meu avô percebeu que meu corpinho era mole e que eu não sentava direito. Fui levada a um centro pediátrico de referência, e o médico constatou que eu apresentava paralisia cerebral. Ele logo disse a meus pais que não tivessem muita expectativa: eu não andaria e não falaria em nenhum momento da minha vida.
A partir daí, fui tratada por diversos especialistas: ortopedistas, neurologistas e muitos outros profissionais. Recebi incentivo para frequentar uma escola regular, mas a matrícula foi difícil. Duas instituições me recusaram, até que minha mãe conseguiu encontrar uma instituição. Com a ajuda da Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae), o colégio foi fazendo adaptações e, até o 3º ano, não encontrei barreiras. Mas, ao chegar à 4ª série, fui reprovada. Percebiam que eu sabia o conteúdo — o problema era que a professora não entendia a minha letra. Ao descobrirem isso, virei assistente da mesma professora. Foi com o tempo que a situação se complicou. Na adolescência, os alunos podem ser muito cruéis. Eu não conseguia correr como eles, nunca entrava na roda da paquera e me vi sozinha. No ensino médio, mudei de escola e passei a estudar com outros portadores de deficiência. Ainda assim, sofria ameaças e fui até derrubada por colegas.
Ao terminar o colégio, em 2011, parti atrás de um emprego. Não foi fácil achar uma vaga na cidade. Eu chegava para a entrevista e diziam que já tinham contratado alguém. Só consegui uma colocação em um município vizinho de Curitiba. No momento em que comecei a gerir minha vida financeira e a sair com os colegas do trabalho, reparei que não havia pessoas com deficiência nas ruas. Aquilo me incomodou profundamente. Desde então, comecei a estudar inclusão e acessibilidade e a cobrar vereadores por mudanças. A grande transformação para mim veio quando minha mãe me inscreveu no vestibular de geografia da Universidade Federal do Paraná Litoral. Eu fazia um curso técnico em RH e foi complexo conciliar tudo, mas passei na prova e engatei na faculdade, que era meu sonho. Foram muitas dificuldades, do elevador que quebrou dois dias após o início das aulas aos métodos que não levavam em conta meu ritmo. Apenas com a chegada de uma educadora especializada tudo mudou e me adaptei.
Recebi o incentivo para escrever um artigo para um congresso de educação inclusiva, que foi aceito e me despertou a paixão pela pesquisa. Agora, finalmente, peguei meu diploma, que tem um significado todo especial. Fui a primeira estudante com paralisia cerebral a me formar na UFPR Litoral e a segunda da instituição no estado, sendo que a estudante que veio antes se formou em 2003. Portanto, há um hiato de duas décadas entre ela e eu. O ambiente acadêmico tem cotas e leis, mas não vejo ali incentivo para que pessoas ocupem tais espaços. Enxergo na pesquisa que sigo fazendo uma forma de ajudar outros como eu a obter conquistas semelhantes. A sala de aula é o primeiro lugar de inclusão. A partir dela, podemos mirar o mercado de trabalho. Se hoje tantos espaços ainda não garantem a acessibilidade, como deveriam, é porque não foram pensados por gente com deficiência. Espero poder quebrar mais barreiras para que aqueles que vierem depois de mim não esbarrem com os mesmos obstáculos.
Manu Aguiar em depoimento dado a André Sollitto
Publicado em VEJA de 14 de dezembro de 2022, edição nº 2819