Que descanso eterno, que nada: turismo em cemitérios ganha força no Brasil
Movimento tem relevância na Europa e nos Estados Unidos. Mas antes será preciso vencer o tabu

São 2 milhões de vivos, todos os anos, pelas alamedas de alguns dos mais conhecidos mortos da história. No Père-Lachaise, em Paris, cemitério construído por Napoleão em 1804, o movimento é de outro mundo. Atire a primeira pedra quem não pensou em rabiscar alguma coisa na tumba de Jim Morrison, o vocalista do The Doors, eternizado pela balada The End — “This is the end, my only friend”. Quem, ali estando ou sonhando conhecer, não depositou uma flor em homenagem a Allan Kardec, o pai do espiritismo, ou para Édith Piaf, La Môme da canção francesa? Em Buenos Aires, a peregrinação ao sepulcro de Evita Perón não para. O Forrest Lawn Memorial Park, em Glendale, na Califórnia, foi apelidado de “Disney da morte”, e não por acaso, dadas as exposições itinerantes e as celebrações — sim, celebrações — em torno dos jazigos de nomes como o rei do pop, Michael Jackson, o cantor Nat King Cole e o próprio Walt Disney. Faz sucesso o livro 199 Cemeteries to See Before You Die (199 Cemitérios para Ver Antes que Você Morra), ainda sem versão em português.
Em muitos países, enfim, o turismo pelos corredores da última morada não para de crescer e já faz parte dos bons guias de viagem. A novidade é esse tipo de passeio começar a se consolidar no Brasil, no avesso do tabu, porque realmente nunca foi fácil tomar coragem e ultrapassar os portões pelo prazer de uma caminhada ou mesmo um piquenique. O ano de 2025 pode ser o da consolidação dessa modalidade brasileira de, digamos, diversão. O Cemitério da Soledade, em Belém, no Pará, inaugurado em 1850, recebeu um banho de loja, mas nada que tenha ferido o fato de ser tombado pelo patrimônio histórico. Reinaugurado, virou um centro cultural de defesa da arte amazônica. O Vila Formosa, em São Paulo, o maior da América Latina, oferece uma trilha ambiental autoguiada para atrair moradores do entorno à prática de exercícios físicos. O local abriga a quarta maior área verde de São Paulo, atrás apenas dos parques Ibirapuera, Anhanguera e do Carmo, e tem cerca de 10 000 árvores distribuídas por toda a sua extensão, tornando-se um imponente centro de biodiversidade.

O Cemitério da Consolação, também em São Paulo, recebe desde o ano passado excursões noturnas promovidas pelo advogado Thiago de Souza. As estrelas da aventura debaixo de estrelas (quando o céu cinzento autoriza) são os monumentos para Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral e Luís Gama. Thiago, aliás, como constatação da tendência, é o criador de uma conta nas redes sociais com 150 000 assíduos fiéis, “O que te assombra”, destinada a lidar com humor e leveza com o luto. Em um ano de atividade, e crescendo, mais de 5 000 pessoas entraram na brincadeira de flanar de um lado para o outro entre pedras e flores. “Os cemitérios são os maiores contadores de histórias”, diz Souza. “Neles estão as biografias que costuram o tecido complexo que chamamos de sociedade.” Que o diga o Cemitério São João Batista, no Rio, palco de interesse permanente, que mistura Carmen Miranda com Santos Dumont, Luís Carlos Prestes com Chacrinha, Cazuza com José de Alencar.
O extraordinário é saber que os cemitérios, do ponto de vista de arquitetura, especialmente, mas também dos dizeres anotados no mármore, são retratos de seu tempo, associados a um passo interessante demais para ser desdenhado: aos epitáfios clássicos, somam-se os dizeres da mocidade, como acontece com frequência no parisiense Père-Lachaise, e então uma máxima romântica do século XIX dá as mãos a corações flechados de hoje ou a hashtags como #teamo. Não há heresia alguma, ao contrário. São as camadas de civilização se sobrepondo, e assim deve ser. “Pode-se entender muito sobre uma cidade a partir de seu cemitério. Afinal, a cidade dos mortos nada mais é que um reflexo da cidade dos vivos”, diz Aline Silva Santos, arquiteta e professora do Instituto Federal de São Paulo.

A atividade é séria. A Associação Brasileira de Estudos Cemiteriais, associada a pares de todo o planeta, lidera esforços para promover esses locais como espaços de educação e memória. A entidade realiza encontros bienais que discutem os períodos artísticos das esculturas e os aspectos culturais em torno da morte. Está mais do que na hora, portanto, de fazer como na Europa e nos Estados Unidos — e tornar a jornada um momento tão bom quanto um domingo no parque, apesar da saudade, apesar da dor que pode vir à tona, em forma de lembrança. Não vale, é bom avisar, posturas como a do poeta inglês P.B. Shelley (autor da antologia de poemas Prometeu Desacorrentado) e de sua mulher, a escritora Mary Shelley, criadora do clássico de terror Frankenstein, de 1818. O casal fez questão de espalhar, em tempos de provocação, de modo a chocar a sociedade, um fato inusitado: os dois teriam feito amor pela primeira vez em cima do ataúde da mãe dela. Aí já é demais. Melhor é seguir com idílicos alvoreceres e fins de tarde, conhecer a existência de gente famosa, e está de bom tamanho. E que não seja apenas no Dia de Finados.
Publicado em VEJA de 10 de janeiro de 2025, edição nº 2926