Relâmpago: Assine Digital Completo por 2,99

Que descanso eterno, que nada: turismo em cemitérios ganha força no Brasil

Movimento tem relevância na Europa e nos Estados Unidos. Mas antes será preciso vencer o tabu

Por Marília Monitchele Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 11 jan 2025, 08h00

São 2 milhões de vivos, todos os anos, pelas alamedas de alguns dos mais conhecidos mortos da história. No Père-Lachaise, em Paris, cemitério construído por Napoleão em 1804, o movimento é de outro mundo. Atire a primeira pedra quem não pensou em rabiscar alguma coisa na tumba de Jim Morrison, o vocalista do The Doors, eternizado pela balada The End — “This is the end, my only friend”. Quem, ali estando ou sonhando conhecer, não depositou uma flor em homenagem a Allan Kardec, o pai do espiritismo, ou para Édith Piaf, La Môme da canção francesa? Em Buenos Aires, a peregrinação ao sepulcro de Evita Perón não para. O Forrest Lawn Memorial Park, em Glendale, na Califórnia, foi apelidado de “Disney da morte”, e não por acaso, dadas as exposições itinerantes e as celebrações — sim, celebrações — em torno dos jazigos de nomes como o rei do pop, Michael Jackson, o cantor Nat King Cole e o próprio Walt Disney. Faz sucesso o livro 199 Cemeteries to See Before You Die (199 Cemitérios para Ver Antes que Você Morra), ainda sem versão em português.

Em muitos países, enfim, o turismo pelos corredores da última morada não para de crescer e já faz parte dos bons guias de viagem. A novidade é esse tipo de passeio começar a se consolidar no Brasil, no avesso do tabu, porque realmente nunca foi fácil tomar coragem e ultrapassar os portões pelo prazer de uma caminhada ou mesmo um piquenique. O ano de 2025 pode ser o da consolidação dessa modalidade brasileira de, digamos, diversão. O Cemitério da Soledade, em Belém, no Pará, inaugurado em 1850, recebeu um banho de loja, mas nada que tenha ferido o fato de ser tombado pelo patrimônio histórico. Reinaugurado, virou um centro cultural de defesa da arte amazônica. O Vila Formosa, em São Paulo, o maior da América Latina, oferece uma trilha ambiental autoguiada para atrair moradores do entorno à prática de exercícios físicos. O local abriga a quarta maior área verde de São Paulo, atrás apenas dos parques Ibirapuera, Anhanguera e do Carmo, e tem cerca de 10 000 árvores distribuídas por toda a sua extensão, tornando-se um imponente centro de biodiversidade.

ÚLTIMO TANGO - La Recoleta, em Buenos Aires: interesse por Evita Perón
ÚLTIMO TANGO - La Recoleta, em Buenos Aires: interesse por Evita Perón (Lucas Aguayo Araos/SOPA Images/LightRocket/Getty Images)

O Cemitério da Consolação, também em São Paulo, recebe desde o ano passado excursões noturnas promovidas pelo advogado Thiago de Souza. As estrelas da aventura debaixo de estrelas (quando o céu cinzento autoriza) são os monumentos para Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral e Luís Gama. Thiago, aliás, como constatação da tendência, é o criador de uma conta nas redes sociais com 150 000 assíduos fiéis, “O que te assombra”, destinada a lidar com humor e leveza com o luto. Em um ano de atividade, e crescendo, mais de 5 000 pessoas entraram na brincadeira de flanar de um lado para o outro entre pedras e flores. “Os cemitérios são os maiores contadores de histórias”, diz Souza. “Neles estão as biografias que costuram o tecido complexo que chamamos de sociedade.” Que o diga o Cemitério São João Batista, no Rio, palco de interesse permanente, que mistura Carmen Miranda com Santos Dumont, Luís Carlos Prestes com Chacrinha, Cazuza com José de Alencar.

O extraordinário é saber que os cemitérios, do ponto de vista de arquitetura, especialmente, mas também dos dizeres anotados no mármore, são retratos de seu tempo, associados a um passo interessante demais para ser desdenhado: aos epitáfios clássicos, somam-se os dizeres da mocidade, como acontece com frequência no parisiense Père-­Lachaise, e então uma máxima romântica do século XIX dá as mãos a corações flechados de hoje ou a hashtags como #teamo. Não há heresia alguma, ao contrário. São as camadas de civilização se sobrepondo, e assim deve ser. “Pode-se entender muito sobre uma cidade a partir de seu cemitério. Afinal, a cidade dos mortos nada mais é que um reflexo da cidade dos vivos”, diz Aline Silva Santos, arquiteta e professora do Instituto Federal de São Paulo.

Continua após a publicidade
LA VIE EN ROSE - Père-Lachaise, em Paris: Piaf (na foto), Morrison e Kardec
LA VIE EN ROSE - Père-Lachaise, em Paris: Piaf (na foto), Morrison e Kardec (Bruno de Hogues/Gamma-Rapho/Getty Images)

A atividade é séria. A Associação Brasileira de Estudos Cemiteriais, associada a pares de todo o planeta, lidera esforços para promover esses locais como espaços de educação e memória. A entidade realiza encontros bienais que discutem os períodos artísticos das esculturas e os aspectos culturais em torno da morte. Está mais do que na hora, portanto, de fazer como na Europa e nos Estados Unidos — e tornar a jornada um momento tão bom quanto um domingo no parque, apesar da saudade, apesar da dor que pode vir à tona, em forma de lembrança. Não vale, é bom avisar, posturas como a do poeta inglês P.B. Shelley (autor da antologia de poemas Prometeu Desacorrentado) e de sua mulher, a escritora Mary Shelley, criadora do clássico de terror Frankenstein, de 1818. O casal fez questão de espalhar, em tempos de provocação, de modo a chocar a sociedade, um fato inusitado: os dois teriam feito amor pela primeira vez em cima do ataúde da mãe dela. Aí já é demais. Melhor é seguir com idílicos alvoreceres e fins de tarde, conhecer a existência de gente famosa, e está de bom tamanho. E que não seja apenas no Dia de Finados.

Publicado em VEJA de 10 de janeiro de 2025, edição nº 2926

Publicidade

Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

Domine o fato. Confie na fonte.

10 grandes marcas em uma única assinatura digital

ECONOMIZE ATÉ 82% OFF

Digital Completo

Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*
Apenas 2,99/mês

Revista em Casa + Digital Completo

Receba 4 revistas de Veja no mês, além de todos os benefícios do plano Digital Completo (cada revista sai por menos de R$ 9)
A partir de 35,90/mês

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
Pagamento único anual de R$35,88, equivalente a R$ 2,99/mês.

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.