Palmada não resolve: nova pesquisa dá contornos a uma angústia dos pais
Sem saber como impor limites, eles acabam apelando para velhas e condenáveis práticas
A migração de um modelo rígido de educação dos filhos para um sistema mais liberal, em que a criança também tem voz e o diálogo é ferramenta essencial para aparar arestas, foi considerado um avanço notável, registrado ao longo das últimas décadas do século XX. A guinada, porém, impôs um novo desafio aos pais de hoje, que muitas vezes se veem perdidos em meio às asperezas diárias da criação de uma prole que se desenvolve sob uma moldura de maior liberdade e autonomia. A questão sobre a qual os adultos estão debruçados é justamente achar um ponto razoável, de modo que a garotada não se sinta senhora da situação por não ser apresentada de forma clara e assertiva, tal qual defendem os educadores, a um vocábulo elementar: limite. Tudo isso se exacerba nos primeiros anos de vida, quando os seres em plena formação estão engatinhando na compreensão do mundo à sua volta, enquanto os progenitores aprendem o bê-á-bá do que é educar à base de tentativa e erro, guiados por altas doses de intuição.
O resultado dessa turma bem-intencionada, mas ainda tateando o terreno, é um acúmulo de estratégias sabidamente ineficazes na tarefa maior que é transmitir um conjunto de bons hábitos e valores a quem está começando a vida. Uma nova pesquisa da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, em parceria com o Datafolha, dá contornos a essa batalha diária dos pais da meninada de até 6 anos, ainda na fase chamada de primeira infância. Após ouvir uma vasta amostra de brasileiros, constatou-se que, sem encontrar alternativa melhor, às vezes no desespero, uma parcela expressiva aplica táticas com as quais não concorda. Não raro, recorrem à palmada (29%), embora maciçamente repudiem a ideia (80%). Gritos para repreender o filho são também frequentes (44%), assim como pôr de castigo (68%). Outra prática comum (47%) é implantar um sistema de recompensas: “Você para de chorar e eu te dou um sorvete”. Essas medidas que põem a conversa em segundo plano são criticadas pelos próprios adultos que as usam cotidianamente (veja o quadro), em movimento que exige reflexão mais demorada. “A incoerência entre o que os pais acreditam e o que fazem soa como um pedido de socorro”, diz Mariana Luz, diretora da fundação e à frente da pesquisa.
Um ponto pacífico entre os especialistas é que educação exige tempo e elevados graus de paciência por parte daqueles que se aventuram na jornada a um só tempo prazerosa, quando bem-sucedida, e complexa. A rotina acelerada da vida moderna, é evidente, não contribui para os bons passos. Também a dinâmica familiar mudou, neste caso cravando um avanço a ser celebrado: as mulheres puseram de vez os pés no mercado de trabalho e estão cada vez mais presentes, se fazendo visíveis inclusive em cargos de comando. Na prática, travam um duelo permanente com o relógio para dar conta do duplo batente. É verdade que a participação da ala masculina aumentou, proporcionando uma saudável divisão da carga em casa. Mas acaba que ambos se veem muitas vezes exaustos, sem ter como esconder a irritação em relação às variadas demandas dos pequenos, que, diante de uma explosão do pai ou da mãe, tendem a sentir culpa, segundo indicam os estudos. Respostas ríspidas vêm, em geral, envoltas em arrependimento dos pais, como relata o analista de dados Thiago Carvalho, 34 anos, que é tomado de angústia quando não consegue dialogar de maneira gentil e calma ao conversar com a filha Nina, de 6 anos. “Sempre tento pensar muito nas minhas atitudes. Só que em certos momentos estou tão cansado ou impaciente que projeto isso nela, que não tem nada a ver com a história”, diz ele.
Muitos pais elencam entre suas preocupações o medo de causar frustração ao filho ao lhe dizer um “não”, sentimento que tem raízes na educação que tiveram no passado, demasiado severa, que por nada querem repetir. Está aí aberto o caminho, trilhado por uma fatia das pessoas no pleno exercício da paternidade ou da maternidade, para o que se convenciona chamar na psicologia de “permissividade excessiva”, em que as fronteiras entre o que pode e o que não pode ficam para lá de fluidas, levando justamente àquelas situações extremas com as quais é tão difícil lidar. Eis uma armadilha para todos — a começar pela criança, que passa a se sentir no controle, posição para a qual definitivamente não está preparada, podendo desenvolver ansiedade e inseguranças por não enxergar no adulto uma autoridade firme e capaz de guiá-la pelo desconhecido. “Se o filho é o tempo todo atendido em suas demandas, passa a ter exigências infinitas e fica confuso”, enfatiza Adela Stoppel de Gueller, coordenadora do curso de psicanálise da criança no Instituto Sedes Sapientiae.
É nesse universo que uma pergunta leva à outra e nenhuma boa teoria resiste ao calor dos acontecimentos — e muita gente apela para o grito, quando não para castigos físicos ou psicológicos. Esses são recursos altamente contraindicados pela ciência pelo risco que embutem de se converter em cicatrizes psicológicas fundas e perenes. Um estudo da Organização Mundial da Saúde (OMS) investigou os efeitos de tapas e beliscões aplicados em crianças de 49 países. Conclusão: a regularidade da prática faz cair em 24% as chances de um desenvolvimento pleno e saudável. “As evidências são de que essa natureza de castigo não oferece nenhum benefício às crianças nem aos pais”, diz o epidemiologista Etienne Krug, diretor da área responsável pelo tema na OMS.
Sob o ângulo da neurociência, os primeiros anos da existência são especialmente decisivos para tudo o que vem depois. O cérebro se desenvolve durante esse período em ritmo acelerado, contabilizando cerca de 1 milhão de sinapses por segundo, processo que praticamente se encerra aos 6 anos. É justamente nessa etapa que a mente humana experimenta a maior plasticidade, funcionando como uma esponja que vai sendo moldada pela experiência e absorve tudo em volta. Por essa razão, ressaltam os pesquisadores, esse delicado estágio da existência requer especial atenção dos adultos. Embora tenham a compreensão disso, como mostra o levantamento que agora vem à luz, muitos pais ainda penam para alcançar o tão almejado equilíbrio e acabam, diante de uma birra que não passa, se perdendo em ameaças (44% admitem a prática). No rol das mais recorrentes nestes tempos ultraconectados está a de tirar o acesso às telas, amplamente disponíveis em tão tenra idade. Celulares e TV vêm funcionando, aliás, como babá eletrônica quando os pais estão exauridos e sem outros recursos na manga. A atriz Isabel Paiva, 25 anos, admite que às vezes cai na tentação, por mais que reconheça não ser o ideal (e não é mesmo), para dar uma acalmada em Nicola, de 5 anos. “Não sou adepta de castigos e nunca grito ou bato, mas, na necessidade, é a televisão que resolve a situação”, diz.
Sabidamente não há uma única receita para educar bem, mas já está estabelecido que demarcar limites e deixá-los muito claros aos filhos, transmitindo a mensagem com toda a firmeza e nenhuma violência, é o caminho mais exitoso para uma infância saudável. De resto, é deixar o máximo possível a garotada que dá seus primeiros passos no mundo ir se entendendo nele, à base de estímulos e da própria experiência. “Eles aprendem brincando, interagindo e descobrindo o que sentem”, explica o neuropediatra Mauro Muszkat, da Universidade Federal de São Paulo. Não custa lembrar que a estrada é sinuosa e o aprendizado, permanente. Mãe de Gabriel, 3 anos, e de Lua, 1, a estudante de direito Myllena Fernandes, 27 anos, conta que vive “recalculando a rota”. “De vez em quando, me vejo gritando, brigando, sem paciência, como faziam meus pais, mas procuro sempre oferecer o melhor de mim para eles”, afirma. Aos pais, a quem cabe a difícil missão de fazer a criançada deslanchar, não custa revisitar as irônicas palavras do genial físico alemão Albert Einstein (1879-1955): “Educação é o que resta depois que você esqueceu tudo o que aprendeu na escola”.
Publicado em VEJA de 29 de agosto de 2025, edição nº 2959

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