Os turistas se multiplicam, revoltam cidadãos e levam a dilema: e a economia?
Passado o temor da covid, não tem mais jeito: o mundo vive o estardalhaço do overtourism, o excesso onde deveria haver calma
Pelo sim, pelo não, mal não faz jogar uma moedinha na água clara da Fontana di Trevi, garantia de voltar a Roma. Duro é conseguir um cantinho que seja entre a multidão a cercar o monumento. Roubar um milímetro de olhar da Mona Lisa, no Museu do Louvre, em Paris, é missão inglória — a não ser no triste período logo depois do auge da pandemia, em que o medo vencia a curiosidade e poucas pessoas, sempre de máscara, ladeavam a obra-prima de Leonardo da Vinci. Passado o temor da covid, não tem mais jeito: o mundo vive o estardalhaço do overtourism, o excesso onde deveria haver calma.
É fato incontornável de nosso tempo a avalanche de visitantes em cidades queridas. A turma de fora movimentará, em 2024, o equivalente a 4,7 trilhões de reais na Europa, um aumento de 37% em relação a 2019, antes do vírus. A líder de lotação é Amsterdã, seguida de Paris e Milão (veja no quadro). Recebem mais gente do que deveriam, em evidente nó para a infraestrutura do cotidiano. A cidade holandesa aumenta o tamanho da população, especialmente nas férias de verão, como agora, dez vezes. A capital francesa chega quase lá, multiplicando as pessoas em oito, mesmo com a debandada dos autóctones que fogem como o diabo da cruz, e bem feito para quem escapou durante a Olimpíada e perdeu raro momento de comunhão. As hordas, chamemos assim, movimentam as economias. Em Amsterdã, por exemplo, o forasteiro gasta cerca de 11 dólares para cada morador. A turma alvoroçada para subir a Torre Eiffel desembolsa 9,2 dólares por indivíduo nascido pelas bandas de lá. E daí? A grita contra o turismo chegou ao apogeu em 2024.
A onda, a “turismofobia”, se espalha com avidez. Nos últimos meses houve protestos em Barcelona, Madri, Ilhas Canárias e Maiorca. Um dos slogans dá o tom da briga: “Turismo, sim. Mas não desse jeito”. Os revoltosos sabem não poder jogar fora o bebê junto com a água do banho. Nas últimas seis décadas, o turismo fez o PIB da Espanha crescer mais de 13%. “Apenas não queremos que os turistas façam aqui o que não podem fazer em seus próprios países”, disse ao jornal britânico Financial Times Mateu Hernández, diretor-geral do organismo em Barcelona responsável pela recepção a estrangeiros. “Não desejamos turistas bêbados, não queremos turistas que anseiam apenas comer barato, e nada mais.” É postura reativa que ganha corpo, com paliativos.
A prefeitura de Veneza começou a cobrar, em abril deste ano, uma taxa de 5 euros para quem pensa em passar um único dia na Sereníssima. As multas, caso o valor não seja pago, podem chegar a 500 euros. Em capitais como Paris e Londres, o estacionamento de ônibus de excursões é cada vez mais restrito. No vilarejo japonês de Fujikawaguchiko, aos pés do Monte Fuji, as autoridades locais ergueram uma barreira para impedir as selfies. “É fundamental estar atento à escala local, pois o turismo de massa afeta a vida de quem deseja apenas viver com tranquilidade em suas cidades”, diz Rita Cruz, professora do Departamento de Geografia da USP.
É preciso, sem dúvida alguma, mais respeito e normas que evitem os abusos. “As medidas de controle representam um primeiro passo, mas devem-se buscar outras soluções”, afirma Alan Guizi, professor do curso de turismo da Universidade Anhembi Morumbi. O tema é mercurial, mas convém enxergar a explosão do turismo de um ponto de vista positivo: e assim caminha a humanidade. Houve, a partir do fim do século XX, avanços tecnológicos que facilitaram a compra de bilhetes de avião, sem burocracia e muitas vezes a preços convidativos. Recursos de hospedagem como o Airbnb também ampliaram os deslocamentos. Anote-se, ainda, a maior liberdade de movimentação de chineses e indianos, premidos no passado por falta de dinheiro, mas agora com uma classe média crescente. É natural que os humores do mundo, atrelados à livre iniciativa, se refletissem também nos passeios para muito além das fronteiras. Paciência é o nome do jogo — ainda que, insista-se, caiba um pouco de organização no caos. E aí sim, quem sabe, a Mona Lisa poderá sorrir mais de pertinho.
Publicado em VEJA de 30 de agosto de 2024, edição nº 2908