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Os avós que, com filhos morando fora do país, viraram globetrotters

Idosos que nunca pensaram em pegar um avião hoje são viajantes frequentes — tudo para matar a saudade e poder conviver com os netos

Por Matheus Deccache Atualizado em 4 jun 2024, 11h45 - Publicado em 5 jun 2022, 08h00
UM POUCO LÁ, UM POUCO CÁ - A filha Patrícia já morava há quinze anos nos Estados Unidos quando Maria de Lourdes, 79, se animou a viajar. Motivo: a chegada de Enzo, 12. Agora, se divide entre Miami e Rio, com idas a Nova York (na foto) -
UM POUCO LÁ, UM POUCO CÁ – A filha Patrícia já morava há quinze anos nos Estados Unidos quando Maria de Lourdes, 79, se animou a viajar. Motivo: a chegada de Enzo, 12. Agora, se divide entre Miami e Rio, com idas a Nova York (na foto) – (./Arquivo pessoal)

Entre as coisas mais gostosas da infância, poucas são tão marcantes quanto a casa dos avós. Nessa espécie de segundo lar, mais tolerante e relaxado, os pequenos reinam absolutos, com a certeza de que podem pintar e bordar à vontade, exagerar nas guloseimas e até fazer um pouco de birra porque dificilmente perderão a majestade. Esse ambiente recheado de carinho, afeto e bolo de chocolate, no entanto, está ficando cada vez mais distante para as legiões de netinhos que foram morar com os pais no exterior. De acordo com o Itamaraty, o contingente de brasileiros que vivem fora do país subiu 35% entre 2010 e 2020 e já soma 4,2 milhões de expatriados. Uma das consequências desse êxodo foi o surgimento de uma nova classe de turistas: os vovôs e vovós que, no ímpeto de matar a saudade dos filhos e netos, criam coragem e se lançam mundo afora.

Em plena pandemia, bastou a vacinação chegar para a fila do check-in das prioridades por idade crescer. A CVC, principal operadora de turismo do país, registrou aumento de 7,5% no número de embarques de passageiros com mais de 60 anos em voos internacionais nos dois anos terríveis, 2020 e 2021. Só no ano passado, esse grupo correspondeu a 14% do total de clientes. “Não consigo ficar longe”, resume o professor Marcos Aurélio Soares, 61 anos, que pelo menos uma vez por ano passa quinze dias em Boston para conviver com os netos Laura, 8, e Miguel, 9. Em 2016, a mãe deles, Mariana, decidiu se mudar com as crianças para os Estados Unidos, onde já estava um irmão dela, em busca de melhor qualidade de vida. Desde então, Laura e Miguel aguardam ansiosos a visita do vovô. “Fico triste na hora de voltar, mesmo sabendo que vou visitá-los de novo no ano que vem. Não consegui ainda me acostumar com a distância”, suspira Soares.

A maior disponibilidade de tempo, que permite comprar passagens a preços mais em conta fora da alta temporada e aproveitar as promoções das companhias aéreas, é fator que conta a favor dos vovôs e vovós globetrotters. Os mais animados, depois de algumas idas e voltas à casa dos filhos, ampliam o roteiro para viagens em família a novos destinos. A psicanalista Thais, 69 anos, e o marido Roberto Rosenthal, 73, atravessam o planeta para abraçar os netos Daniel e Isabella, de 13 e 8 anos, que moram em Sydney, na Austrália, mas já há algum tempo as visitas nas férias em família passaram a incluir outros locais. Juntos, eles conheceram várias cidades australianas (além de algumas passagens pelo Nordeste brasileiro). “Não vejo a hora de eles ficarem mais velhos para conhecer o mundo comigo”, diz Thais. Para a indústria do turismo, esses novos viajantes são muito bem-vindos, visto que idosos chegam a gastar até 60% a mais do que jovens em viagens em nome do conforto e outros luxos.

NO OUTRO LADO DO MUNDO - Os avós paulistanos Roberto, 73, e Thais Rosenthal, 69, cruzam o globo uma vez por ano para ver Isabella, 8, e Daniel, 13 (na foto com o avô), que moram na Austrália. “O nosso tempo juntos é intenso”, diz Thais -
NO OUTRO LADO DO MUNDO – Os avós paulistanos Roberto, 73, e Thais Rosenthal, 69, cruzam o globo uma vez por ano para ver Isabella, 8, e Daniel, 13 (na foto com o avô), que moram na Austrália. “O nosso tempo juntos é intenso”, diz Thais – (./Arquivo pessoal)

A disposição para cruzar os céus é reflexo de uma mudança significativa no estilo de vida de quem encara a velhice nos dias atuais. Com o avanço da medicina e o aumento da expectativa de vida — entre 2010 e 2020, passou de 73,4 para 76,8 anos —, os idosos adquiriram outra visão de sua capacidade e novos hábitos. “A representação do envelhecimento mudou radicalmente a imagem da avó. A Dona Benta do Sítio do Picapau Amarelo, sempre sentadinha na cadeira de balanço, ficou no século passado”, afirma a antropóloga Mirian Goldenberg, que faz pesquisas sobre envelhecimento e felicidade. “Hoje, as pessoas idosas são, na maioria, completamente ativas e independentes”, diz.

Cruzar fronteiras pode, inclusive, ser um fator de promoção da vida saudável, garantem os especialistas. “Ao viajar, o idoso sai da sua zona de conforto e evita que os sistemas físico e mental fiquem atrofiados”, explica Paulo Camiz, geriatra dos hospitais Albert Einstein e Sírio-Libanês. Maria de Lourdes Martins, 79 anos, nunca tinha deixado o Rio de Janeiro, nem quando a filha mais nova decidiu ir morar em Miami, em 2001, e lá se casou quatro anos depois. O nascimento de Enzo, 12 anos, mudou tudo. “Passei a viver entre a Flórida e o Rio para conseguir ficar no mínimo seis meses por ano com ele”, conta. Quando dá, a turma estica até outras cidades — recentemente, visitaram Nova York. Além do tempo juntos, Maria ajuda a cuidar de Enzo, prestando um tipo de assistência com que os brasileiros no exterior não costumam contar. Vovôs e vovós, afinal de contas, querem mesmo é estar perto dos netos (e vice-­versa) estejam onde estiverem.

Publicado em VEJA de 8 de junho de 2022, edição nº 2792

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