Nepal estimula turismo no Everest, mas fluxo de alpinistas traz riscos
A montanha vive situação inédita. De um lado, o governo e as empresas que desejam ampliar ainda mais o número de visitantes. De outro, os críticos
Desde que foi conquistado pelo neozelandês Edmund Hillary e pelo xerpa Tenzing Norgay, em 1953, o Monte Everest, na Cordilheira do Himalaia, foi escalado por mais de 6 000 alpinistas. Durante muito tempo, contudo, chegar ao topo do mundo representava um feito tão extraordinário quanto único, e os alpinistas que desbravavam as geladas montanhas escreviam seus nomes entre os grandes aventureiros da história. Tudo começou a mudar a partir da década de 90, quando agências especializadas passaram a oferecer pacotes turísticos e treinamento especializado a candidatos que pretendiam alcançar o cume, mesmo aqueles com modesta experiência em encarar desafios desse tipo. Com a intensa procura e o relativo despreparo de alguns montanhistas, as tragédias se tornaram inevitáveis. Em 2015, uma avalanche matou 22 pessoas, que engrossaram a lista dos cerca de 300 alpinistas que já morreram nos caminhos do Everest. Agora, a montanha vive situação inédita. De um lado, o governo do Nepal e as empresas de turismo que desejam ampliar ainda mais o número de visitantes no local. De outro, os críticos que se preocupam com a superlotação da montanha.
Há pouco mais de dez anos, o número de licenças emitidas pelo Nepal para que alpinistas profissionais tentassem alcançar o cume do Everest disparou. Em 2008, foram 160 autorizações. Em 2021, o número chegou a 408, o recorde atual. A intensa movimentação tem consequências sérias, principalmente por aumentar ainda mais os riscos. Em 2019, ano em que foi emitido o recorde anterior de permissões (veja o quadro), as imagens da montanha abarrotada de alpinistas, ansiosos para tirar uma selfie lá perto do céu nem que para isso fosse necessário passar por cima dos cadáveres de outros colegas, chocaram o mundo. Na ocasião, o britânico Nick Hollis, membro do seleto grupo de 500 atletas que já escalaram os picos mais altos nos sete continentes, afirmou que alpinistas incompetentes eram responsáveis pelo aumento da mortalidade.
O turismo desenfreado traz consequências ambientais expressas na impressionante quantidade de lixo abandonada pelos alpinistas. Cada tentativa de chegar ao cume envolve um volume enorme de equipamentos, entre cordas, cilindros de oxigênio, barracas e outros itens. Recrutados para guiar os alpinistas, os xerpas, grupo étnico do Nepal conhecido pela habilidade em escalar montanhas, sobem carregados, mas deixam os objetos no alto da montanha. Agora, grupos estão se mobilizando para limpar a sujeira. Um dos protagonistas do esforço é o nepalês Nimsdai Purja, conhecido por conquistar, em seis meses, todos os catorze picos do mundo com ao menos 8 000 metros e registrar o feito em um filme da Netflix. Além de convocar os membros da própria equipe, ele pretende pagar aos xerpas para que retornem com os equipamentos usados.
Em 2022, o número de turistas que se inscreveram para escalar o Everest dá sinais de queda, a despeito dos esforços do governo nepalês para atraí-los. Até agora, foram emitidas 292 licenças, e o contingente final não deve ficar longe disso, já que a maioria das tentativas de alcançar o topo acontece em maio, antes da temporada de monções, e quase todos os alpinistas já chegaram ao acampamento-base, de onde saem os grupos rumo ao infinito. Para o Nepal, um país dependente do turismo, esse recuo de 30% representa sério prejuízo econômico. Cada licença custa 11 000 dólares e é válida para um grupo de até sete alpinistas, com valores adicionais para cada pessoa além do limite.
Em 2021, o governo arrecadou 4,5 milhões de dólares com as autorizações. O valor não inclui o excedente gasto pelos turistas e pelas equipes de apoio, como vistos, contratação de guias, reservas em hotéis e aluguel de meios de transporte, entre outras necessidades. Quando a pandemia começou, as fronteiras foram fechadas e o governo local suspendeu o turismo. O resultado foi uma grave crise econômica que ainda não foi superada. Em 2022, tentando atrair mais visitantes, algumas regras sanitárias, como o teste obrigatório de Covid-19, foram banidas para turistas vacinados. Mas os resultados não surtiram o efeito desejado. O Nepal precisa dos recursos dos turistas, mas a seleção descuidada dos alpinistas tem aumentado a mortalidade na montanha e polui o meio ambiente. Encontrar o equilíbrio entre os dois lados da história é um desafio à altura do maior pico do mundo.
Publicado em VEJA de 18 de maio de 2022, edição nº 2789