Mulheres redescobrem segredos do corpo com produtos de bem-estar sexual
Seis décadas depois da liberdade conquistada nos anos 1960, ganha força uma linha de lançamentos mais delicados e discretos
Voltemos a 1968, o ano que nunca terminou. Martin Luther King e Bobby Kennedy foram assassinados. Os Beatles lançaram o Álbum Branco. O tropicalista Caetano disse que era “proibido proibir”, ecoando os estudantes de Paris. O Vietnã do Norte lançou a Ofensiva Tet — e as mulheres americanas descobriram o clitóris. Em artigo que viralizou como viralizam hoje as bobagens das redes sociais, a escritora Anne Koedt lançou uma bomba em O Mito do Orgasmo Vaginal. Ela pegou um atalho nos ruidosos trabalhos de William Masters e Virginia Johnson, casal de pesquisadores do comportamento que defendia a possibilidade de as esposas chegaram a sucessivos clímax com o apoio de brinquedos, caso não fossem bem-sucedidas com os maridos, e decretou: “É tudo sobre o clitóris”. E, então, o amor-próprio feminino virou manifesto político. Os homens tremeram nas bases, como tremem ainda hoje, porque a elas foi dado o direito inclusive de chegar ao prazer solitariamente.
À revolução sexual que saíra às ruas somou-se uma outra, a da indústria de traquitanas de uso feminino. Contudo, também essa onda acabaria sendo engolida pelo machismo — e às mulheres, desde então, foram oferecidos vibradores, estimuladores e outros gadgets que parecem ter saído de filmes pornográficos, sem delicadeza alguma, entre luzes vermelhas e simulacros fálicos para “apimentar a relação”. Vive-se agora uma segunda retomada desse movimento lúdico. Ele é movido pelos atuais humores do mundo. Os produtos de prazer feminino hoje são mais discretos, numa linha denominada de “bem-estar sexual”. Os lubrificantes já não precisam ter cores vibrantes. Objetos grosseiros deram lugar a peças simples. E mais: apareceram cremes e fluidos naturais para as regiões íntimas (conheça alguns dos produtos ao longo destas páginas). O autocuidado é o nome do jogo, em um nicho que não para de crescer e que foi deflagrado pela pílula anticoncepcional, a primeira grande vitória. Em 2019, esse mercado movimentou, no mundo, cerca de 75 milhões de dólares — em 2027, deve alcançar 108 milhões de dólares. Reafirme-se, quase como um mantra, que a pandemia de Covid-19, associada às facilidades da internet, impulsionou a procura pelos itens de satisfação pessoal e intransferível.
É mudança interessante demais para ser negligenciada ou escondida por trás de cortinas escarlates. “Começa a não haver mais espaço para o imaginário sexual limitado, associado a fetiche, a lugares escuros e neon”, diz Marina Ratton, executiva-chefe da Feel e Lilit, startup brasileira que oferece lubrificantes e um estimulador, o Bullet, destinado à zona erógena. Não é o caso, ainda, de considerar que todos os tabus foram vencidos, evidentemente que não. Mas o grito emitido lá na década de 60 ecoa de outro modo — demorou, mas aos poucos chegamos lá, em ebulição necessária. “O sexo teve sempre como régua o homem”, constata Marina Costin Fuser, doutora em gênero e cinema pela Universidade de Sussex, na Inglaterra. “Felizmente, esses novos cosméticos trazem um olhar generoso com o corpo das mulheres.”
A estrada parece não ter retorno, e nos próximos anos é muito possível que brotem avanços, para espanto dos homens que se alimentam de egoísmo e querem estar no centro das ações. As mulheres ganham espaço e voz em seus relacionamentos. “Ter sexualidade é tão relevante quanto dormir”, resume Carolina Ambrogini, coordenadora do Projeto Afrodite, da Universidade Federal de São Paulo. É, enfim, o desembarque do merecido respeito pelo orgasmo feminino — e não custa nada promovê-lo com a novíssima e sensível família de ofertas sem pudor.
Publicado em VEJA de 27 de julho de 2022, edição nº 2799