Marcha bicentenária: novo livro celebra a história da bicicleta
Uma 'jovem' surgida no século XIX, ela foi alvo de ondas de amor e de ódio
Em 1974, um esboço encontrado no Codex Atlanticus, vasta coleção de rascunhos de Leonardo da Vinci, sugeriu que o gênio renascentista teria imaginado a bicicleta já entre os séculos XV e XVI. A hipótese causou alvoroço, mas logo se provou fraudulenta: um exame minucioso concluiu que, nos anos 1960, algum engraçadinho havia rabiscado a caneta os detalhes unindo dois círculos preexistentes, resultando na figura. Da Vinci não foi o único suspeito da falsa paternidade: são inúmeros os relatos que tentam situar a gênese da bicicleta em eras mais remotas — até o momento, em vão. Com sua aura de máquina simples dotada de charme singular, a bicicleta é um invento que de fato confunde: tem cara de antigo e, ao mesmo tempo, moderno. Sua criação, porém, é mais recente do que se pode intuir: atribuída ao alemão Karl von Drais, ocorreu somente em 1817. O resto é história — não raro, de amor e ódio pela engenhoca, como demonstra com brilho o jornalista americano Jody Rosen no livro A Vida em Duas Rodas, lançado no Brasil pela Rocco.
A pioneira bicicleta, então nomeada Laufmaschine — “máquina andante” —, foi revelada em 12 de junho daquele 1817 na cidade de Mannheim, na Alemanha. Eis a “bike” primitiva: com duas rodas alinhadas por uma tábua, não tinha pedais (o impulso vinha do caminhar), mas já estabelecendo o princípio do homem como motor. O design moderno como o conhecemos, a “bicicleta segura”, surgiu pouco mais tarde, em 1885, com o modelo Rover, criado pelo inglês John Kemp Starley. As inovações estruturais não foram das mais radicais desde então.
Quanto à recepção, a bike enfrentou sucessivas ondas de popularidade e críticas em sua trajetória. Conforme explica Rosen, ao ser abraçada pelos ricos, ela foi de novidade elegante a brinquedo satirizado, chegando mesmo ao posto de objeto infame, às vezes vítima de proibições ou violência declarada. O que sempre permaneceu, entretanto, foi a percepção da bicicleta como apetrecho revolucionário. Para alguns, até subversivo: quando o ditador nazista Adolf Hitler assumiu o poder, em 1933, um de seus primeiros atos foi fechar o sindicato de ciclistas na Alemanha.
De início, a bicicleta conferiu autonomia, libertando os homens da dependência dos animais de carga. Depois, nivelou classes sociais e derrubou barreiras de gênero. A partir dos anos 1970, conquistou ainda papel de valor no ativismo verde — e é lembrada cada vez mais como resposta essencial às ameaças da mudança climática. Hoje, num mundo dominado por cerca de 1 bilhão de carros, aponta Rosen, há o dobro de bicicletas, cumprindo à altura suas variadas funções diárias nos centros urbanos e zonas rurais. A onipresença e versatilidade das duas rodas não deixam dúvidas: a Terra é um “planeta bicicleta”. E segue avante: para o autor, estamos na maior de todas as ondas de interesse nela, com crescimento notável num mercado que deve atingir 80 bilhões de dólares em 2027.
Embora narre suas aventuras sobre duas rodas como algo sublime, Rosen não cede à romantização barata. Pelo contrário, abarca suas implicações sociais negativas, como quando joga luz sobre as controvérsias do início de sua fabricação — as matérias-primas, aço e borracha, estavam calcados na violência colonial, na exploração do trabalho e em altos custos para o meio ambiente. Lembra, ainda, que a despeito das fantasias de bicicletas voadoras do imaginário popular, consagradas numa cena do sucesso do cinema em E.T. — O Extraterrestre (1982), de Steven Spielberg, a realidade palpável não é tão mágica: nem todo ciclista o faz por estilo de vida, perambulando pelas ruas cordiais de Copenhague ou Amsterdã. Em muitos lugares — a exemplo do Brasil, onde cresce a pauta sobre os entregadores em situação informal — ela se mostra uma necessidade de sobrevivência. Pode-se amá-la ou odiá-la — mas pedalar é viver.
Publicado em VEJA de 19 de abril de 2023, edição nº 2837
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