Londres e Paris travam uma briga das boas na cultura
A capital do Reino Unido saiu na frente em número de instituições culturais. Ferida nos brios, a francesa corre para recuperar sua histórica primazia
Na cronologia da cultura como mola propulsora e fonte de inspiração de todos os avanços da humanidade, Paris tem lugar de honra: foi na capital francesa que a difusão cultural nasceu e floresceu, estimulada por um ambiente amplamente receptivo às artes e à academia. Neste século XXI, porém, enquanto a cena parisiense meio que seguia em piloto automático — muito embora seu curso abarque atrações como o extraordinário Louvre, o museu mais popular do mundo, com 2,8 milhões de visitantes por ano —, a rival Londres, sede da Olimpíada de 2012 e tomada pelo frenesi criativo que acompanha a competição, pôs-se a abrir museus e galerias a torto e a direito. Resultado: tem hoje 170 (aí incluídas as casas de leilão de arte), quarenta a mais do que Paris. Sacudida da letargia diante da inaceitável proeminência londrina, a capital da França, ela própria em frenéticos preparativos para seus Jogos Olímpicos em 2024, vem inaugurando ou reinaugurando centros culturais em velocidade inédita — uma briga em que todo mundo só tem a ganhar.
O ponto de partida da reação de Paris foi a inauguração, em 2014, da Fundação Louis Vuitton, museu bancado pelo dono do conglomerado de luxo LVMH e homem mais rico da França, Bernard Arnault, instalado em um espetacular prédio no Bois de Boulogne que lembra um barco a vela e foi projetado pelo arquiteto-estrela Frank Gehry. Mexido em seus brios, o maior rival de Arnault, François Pinault, proprietário do Kering, outro grupo de marcas luxuosas, criou seu próprio museu, o Bourse de Commerce, no histórico e desativado prédio da bolsa de valores. Mais recentemente, o Carnavalet e o Cluny, fechados há anos para reformas, foram reabertos em todo o seu esplendor e outros dois museus novinhos — o Hôtel de la Marine, instalado em um magnífico edifício do século XVIII na Place de la Concorde, e a Fundação Pernod Ricard, dedicado à arte contemporânea — abriram suas portas.
A rixa entre cidades próximas é comum e esperada: envolve Rio de Janeiro e São Paulo, Nova York e Los Angeles, Madri e Barcelona e inúmeras outras em todos os cantos do planeta. Mas a rivalidade entre Paris e Londres é tão antiga quanto a sua ascensão à sede de reinos poderosos. Na Idade Média, os respectivos soberanos engalfinharam-se na Guerra dos Cem Anos (vitória da França). No século XVIII, a Guerra dos Sete Anos se encerrou com o Reino Unido levando a melhor e abrindo as portas de seu “império onde o sol não se põe”. “Os dois países viviam em constante batalha por territórios. Da Europa a disputa imperial se transferiu para o Caribe e América do Norte e, mais tarde, para a África, com destaque para o Egito”, explica Daniel Gomes de Carvalho, professor de história da UnB.
Franceses e britânicos só viriam a se unir para se contrapor à Alemanha na I Guerra, inaugurando enfim uma trégua militar e política permanente. Na área cultural, porém, a paz nunca se instalou de verdade. A academia francesa seguiu ditando as normas, não só por Paris ser o berço da manifestação artística menos dependente de patronos, mas também pela forte cultura de apreciação de arte pela população em geral, e não só pelas elites. Londres conseguiu enfim quebrar esse monopólio, e Paris agora corre em busca do tempo perdido.
O apogeu da renovação cultural parisiense deve ser a reabertura em grande estilo, em 2024, da Catedral de Notre-Dame, totalmente recuperada após um incêndio em 2019. Londres, enquanto isso, segue na vanguarda em número de centros de cultura e na indústria da música, embora tenha perdido a liderança no comércio de obras de arte: de acordo com o UBS Global Art Market Report de 2022, o Reino Unido está em terceiro lugar, atrás de Estados Unidos e da China, tendo fechado 2021 com faturamento de 11,3 bilhões de dólares.
Mesmo atrás no ranking, Londres não perdeu a majestade. “É lá que ainda surgem os lances mais valiosos no campo das artes plásticas. Só neste ano, vendemos uma obra-prima de René Magritte por 59,4 milhões de libras e um retrato de Francis Bacon por 43,4 milhões de libras, entre os dez valores mais altos jamais alcançados por uma pintura nos leilões londrinos”, diz Katia Mindlin Leite-Barbosa, presidente da Sotheby’s Brasil. Paris, também aí, tem tudo para contabilizar um expressivo avanço: o Brexit impôs maior taxação no comércio entre Reino Unido e União Europeia e fez pipocar novas casas de leilão e galerias na França. Enquanto isso, a luta para ver quem divulga mais cultura continua. Que seja longa e animada.
Publicado em VEJA de 7 de setembro de 2022, edição nº 2805