Fentanil começa a ser perigosamente usado para fins recreativos no país
Mais poderoso e destrutivo dos opioides entrou no rol das drogas ilegais traficadas no país
Potentes analgésicos, os opiáceos foram adotados ao longo dos tempos para abrandar dores intensas de maneira ritualística e eram também consumidos com fins recreativos. Registros do povo sumério, que fincou base na Mesopotâmia a partir de 5000 a.C., já descreviam a papoula (o popular nome do Papaver somniferum), de onde se extraem tais drogas, como a “planta da alegria”. O mundo caminhou e, no século XIX, surgiu um dos principais derivados do ópio, a morfina, um marco na medicina por seu efeito anestésico. Desde então, novas substâncias com base na mesma planta ou que a reproduzem de modo sintético passaram a ser empregadas contra a dor. Nesse pacote farmacológico, o Fentanil, aprovado em 1968, se revelou o mais poderoso de todos — 100 vezes mais forte que a própria morfina.
Seu uso, porém, tem se desviado cada vez mais do propósito médico e, com desdobramentos altamente destrutivos, vem viciando uma parcela da população mundial e tomando a forma de uma epidemia em países como os Estados Unidos. A preocupante novidade é que, pela primeira vez, há evidências de que o Fentanil entrou no rol das drogas ilegais traficadas no Brasil.
Recentes apreensões deixaram especialistas em estado de alerta diante da presença de tão viciantes e letais ampolas interceptadas pela polícia. No fim de janeiro, remessas de drogas sintéticas que seriam comercializadas no Carnaval, entre elas o Fentanil, foram flagradas em Belo Horizonte. Poucas semanas depois, outra leva foi encontrada no Espírito Santo, onde ainda se detectou o opioide no organismo de um paciente. “São claros sinais de que existe um preocupante mercado em formação”, afirma o psiquiatra Ronaldo Laranjeira, coordenador da unidade de pesquisa em álcool e drogas na Unifesp.
As quadrilhas brasileiras nunca haviam adicionado opioides aos negócios por seu preço elevado (de 300 a 1 500 reais, a depender da dosagem). Pois isso mudou. Agora, as investigações miram desvendar a rota percorrida pelo Fentanil que desaguou em solo brasileiro. “Nunca se teve conhecimento no Brasil de uma rota comercial para esse tipo de tráfico, como há no caso da maconha ou da cocaína”, observa Guaracy Mingardi, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Foi depois da Guerra do Vietnã, na década de 70, que o comércio ilegal desses analgésicos, inicialmente usados para suavizar a dor física dos combatentes, floresceu nos Estados Unidos, vindos direto do Oriente. Nos dias de hoje, eles se infiltram pela fronteira americana a partir do México, onde os cartéis produzem opioides em larga escala. Em seu último discurso sobre o Estado da União, em 7 de fevereiro, o presidente Joe Biden cutucou a espinhosa questão de saúde pública que adentra a seara política: “Vamos impedir que o Fentanil passe da fronteira”, prometeu, embora saiba bem do tamanho do enrosco. Só em 2022, foram apreendidas no país — o mais atingido pela praga dos opiáceos — vultosas cargas que, somadas, davam quase 380 milhões de doses. O medicamento já responde ali por 65% das 100 000 mortes anuais por overdose. O cantor Prince morreu aos 57 anos abatido pela droga, em 2016. Michael Jackson, que saiu de cena aos 50 anos, viciou-se em opioides — o Fentanil entre eles —, mas perdeu a vida mesmo pelo excesso de um outro, o Propofol.
No Brasil, o Fentanil é permitido por lei e vastamente usado nos hospitais em anestesias. E é aí, como ocorre em outros países, que o vício começa a germinar, com médicos e enfermeiros fazendo uso da droga em busca de uma solução rápida para a dor, de relaxamento e euforia — sensações que costumam se prolongar por três horas. Acaba que eles são os mais afetados pelos nefastos efeitos da substância. “O risco de vício já na primeira aplicação é bastante alto”, diz o psiquiatra Frederico Garcia, da Universidade Federal de Minas Gerais. “Qualquer gota em excesso traz riscos de overdose, paradas respiratórias e leva até a morte.”
Quem subestima suas consequências pode ver a vida desmoronar de uma hora para outra. O enfermeiro Amaurí Pedrozo, 27 anos, encarava um exaustivo plantão quando um colega lhe ofereceu Fentanil. “Todo o meu cansaço foi embora no ato, me sentia imbatível”, resume. Mas a conta veio logo no dia seguinte: ele tremia de febre, não conseguia levantar da cama e exibia acentuada confusão mental. Descobriu então que poderia reverter o desconforto com mais uma dose e, assim, em três meses havia multiplicado por cinquenta o consumo diário por ampola. Precisava daquilo para se manter de pé. E permaneceu desse jeito por quatro anos, período em que perdeu o emprego, sofreu um infarto e sete overdoses. “Quase morri e acabei com minha família”, conta ele, que se livrou há quase um ano da dependência à base de internações em clínicas e retornou ao trabalho.
Além das ampolas injetáveis tão usadas no ambiente hospitalar, é possível comprar em farmácias a substância em forma de comprimido ou adesivo, sempre com receita. E aí reside uma engrenagem que faz escalar o problema — há um excesso de prescrições cujo objetivo final é o uso recreativo. Profissionais da saúde se receitam e vendem a droga entre si, em grupos de WhatsApp já manjados nos corredores hospitalares. Nos Estados Unidos, o Fentanil é achado até nas redes. “Para frear o consumo, é preciso que o pedido do medicamento se torne cada vez mais seletivo”, adverte a psiquiatra Analice Gigliotti, diretora da Espaço Clif, uma clínica para dependentes no Rio de Janeiro. Em outra frente, é vital sufocar o tráfico, que descobriu nova e perigosa fonte de renda nesse opioide que muita gente experimenta só para ver como é. Com o Fentanil, uma única vez pode ser o suficiente para um enredo de horror que ninguém quer para si.
Publicado em VEJA de 8 de março de 2023, edição nº 2831