Exposição atesta força da influência de Coco Chanel, que resiste ao tempo
Mais de um século após seu nascimento, a rainha da estética é revisitada nas passarelas como a mais influente estilista
Sem um fio de cerimônia, Gabrielle Bonheur “Coco” Chanel sentenciou: “Eu não crio moda. Eu sou a moda”. O que poderia soar como rompante de arrogância, no entanto, foi uma profecia. Tendências vão e voltam, decotes e bainhas sobem e descem, reputações são construídas e destruídas, e o nome dela perdura como a maior referência de estilo do século XX em diante. Não só: nos 140 anos de seu nascimento, pode-se afirmar que a rainha da estética ajudou a libertar as mulheres de amarras, espartilhos, saltos altos e outras peças que, em nome da elegância, impunham martírios. Se hoje é autorizado vestir um pretinho básico em uma festa à noite ou calçar sapatos baixos com suéteres e calças pelas ruas — sem perder a fineza nem o conforto —, é graças a Coco Chanel.
Símbolo que se confunde com a própria história do bem-vestir, a francesa ganhará em setembro uma exposição com a retrospectiva das seis décadas de sua carreira no Victoria & Albert Museum, em Londres, reunindo 200 looks desenhados por ela. Na mostra desfilarão criações que, mais de meio século depois, continuam sendo envergadas, cobiçadas e copiadas mundo afora. É o caso do lendário tailleur de tweed, tecido inglês de lã de fio grosso, adotado por personalidades como Elizabeth Taylor, Jacqueline Kennedy e a princesa Diana. O museu iluminará também suas primeiras obras, de 1916, figurinos da peça Le Train Bleu do Ballets Russes, de 1924, e roupas usadas por atrizes como Lauren Bacall e Marlene Dietrich, sem falar numa profusão de joias, bolsas e perfumes — além de bijuterias transgressoras que ela misturava às pérolas, outra de suas marcas registradas. O catálogo abrange desde a inauguração da primeira butique até a coleção final, apresentada pouco depois da morte da estilista, aos 87 anos, em janeiro de 1971. “Chanel tem mais bom senso do que qualquer mulher na Europa”, dizia o pintor, amigo e contemporâneo de farras parisienses Pablo Picasso.
Nascida em 1883 na pequena vila de Saumur, na França, ela perdeu a mãe aos 6 anos. Levada a um orfanato, ali aprendeu a costurar. Depois de uma breve carreira como cantora, abriu sua primeira loja de chapéus em 1910. Em seguida, passou a dar ênfase à criação de uma moda confortável para as mulheres, quase um anátema em tempos machistas. A designer adaptou a silhueta masculina dos trajes para as formas femininas, com tecidos mais práticos e acessíveis como as malhas, e o resto é história. “Chanel simplificou o vestuário da maneira sofisticada como ninguém antes havia feito”, diz a consultora de moda Costanza Pascolato. Foi também pioneira em fazer das roupas um manifesto, rompendo e renovando tradições em um período de transformações sociais e reivindicações feministas. Tudo tocado com muita criatividade. “Chanel inventou símbolos, como a camélia, o mix de pérolas e joias de fantasia e o vestido simples preto, revolucionários naquela época”, exemplifica Costanza. Não à toa, a exposição londrina foi batizada de Gabrielle Chanel: Fashion Manifesto.
Ressalve-se, porém, que a trajetória da mademoiselle não foi sempre um passeio firme e delicado pelas passarelas. Houve tropeções, e eles a fazem ainda mais interessante. Durante a II Guerra, no período de ocupação nazista, ela chegou a ser acusada de ser informante dos invasores, dado seu romance com o barão alemão Hans Günther von Dincklage. Seu ateliê foi fechado temporariamente. O episódio quase levou a grife à falência, mas Chanel renasceu e fez um retorno triunfal em 1954, ao revisitar clássicos, como a blusa listrada no estilo marinheiro e os ternos femininos. Ela sobrevivera, embora com a imagem ferida pelo passado recente.
Renasceria definitivamente, com pompa, ajudada por um pequeno frasco de vidro que parecia esquecido no tempo, o Chanel nº 5, formulado por Ernest Beaux em 1921. A varinha mágica de recuperação da grife coube a uma declaração da atriz Marilyn Monroe, em 1952. Instada por uma jornalista a dizer como dormia, ela não vacilou — e garantiu “ vestir” apenas duas gotas da fragrância. E, então, mulheres e homens voltaram a citar, como um mantra, uma outra máxima de Chanel: “Para ser insubstituível, é preciso sempre ser diferente”.
O permanente exercício da diferença pavimentou o futuro, e a ele chegamos. Seu sucessor, o alemão Karl Lagerfeld, concedeu um olhar moderno à marca, que comandou durante 36 anos, mas até sua morte, em 2019, jamais deixou a gênese se perder. Prova disso esteve no prestigiado baile beneficente do Metropolitan Museum (Met), de Nova York, realizado no início deste mês. O homenageado era o pupilo, mas quem zanzava pelos corredores, como sombra, foram as criações e influências de Chanel, como o vestido vintage com pérolas ostentado pela atriz Penélope Cruz. A moda é um retrato de seu tempo. Mas, como mostrou Coco Chanel, o estilo pode ser eterno.
Ícones de um ícone
As criações de Coco Chanel que fizeram história
Modelitos
A década de 50 foi o auge da estilista. Ela projetou no período a famosa bolsa 2.55, de matelassê com corrente de ouro; lançou o tailleur, que revolucionou o vestuário feminino e foi eternizado por Jackie Kennedy e Diana; e o sapato escarpim bicolor, que tem o efeito de alongar as pernas e deixar os pés menores.
Pérolas
Combinadas aos vestidos básicos pretos, tornaram-se marca registrada e onipresente de Chanel — como no look da modelo Inès de La Fressange.
Perfume
Em 1952, ao declarar que, para dormir, só usava duas gotas do Chanel nº 5, Marilyn Monroe imortalizou a fragrância idealizada para a marca.
Publicado em VEJA de 24 de maio de 2023, edição nº 2842