Esquema de falcatruas da ‘guru’ Kat Torres já atinge 21 vítimas
O alerta de sumiço de duas brasileiras nos Estados Unidos trouxe à luz o caso
Linda, bem-sucedida, ex-modelo internacional que teria tido um affair com o ator Leonardo DiCaprio, a paraense Katiuscia Torres Soares, 34 anos, nome de guerra Kat Torres ou Kat A Luz, apresentava-se a seus milhares de seguidores nas redes sociais como sensitiva e dotada de poderes paranormais. Na prática, a suposta espiritualidade exacerbada era usada para aplicar golpes em série segundo vítimas incautas — atividade que levou a influenciadora digital, também autointitulada life coach, guru, vidente e bruxa, à prisão preventiva em uma penitenciária de Minas Gerais, privada das roupas de grife e da casa de cinco quartos no Texas.
A sorte de Katiuscia começou a mudar quando, em um momento de flagrante vacilo de seus poderes, foi pega pela imigração americana e deportada no fim de novembro. Ao pôr os pés no Brasil, um mandado de prisão da 5ª Vara Criminal de São Paulo a aguardava, por suspeita de manter mulheres em condições análogas à escravidão e exploração sexual. Ela ainda é acusada de tráfico humano, estelionato e charlatanismo. A queixa inicial partiu de familiares de duas jovens que se envolveram com ela e puxou o fio da meada de um esquema que já reúne 21 vítimas, segundo levantamento de VEJA. “Seu comportamento nos faz deduzir que estava querendo criar uma seita. Antes de deixar um rastro de destruição na vida das clientes, criava uma dependência e passava a manipulá-las”, relata Gladys Pacheco, advogada de boa parte das vítimas.
A atuação de Katiuscia está sendo investigada pelo Ministério Público Federal em São Paulo, que criou um canal para denúncias. De acordo com oito vítimas ouvidas pela reportagem de VEJA, o modus operandi da suposta guru começava com a falsa promessa de proporcionar a suas seguidoras uma vida tão esplendorosa quanto a que ela exibia nas redes sociais. Aí engatava com as interessadas uma amizade movida a consultas pagas sobre cada passo que pretendiam dar, feitas por aplicativo e que chegavam a custar 250 dólares. No decorrer das tais consultas, as mulheres eram induzidas a se afastar da família, a viver fora do Brasil (se ainda estivessem no país) e, em alguns casos, a ir morar com ela.
O mote para os aliciamentos feitos por Katiuscia, que vez ou outra descambaram para a prostituição, era a chance de trabalhar como au pair — uma espécie de babá, função oferecida a jovens estrangeiras — ou formar sociedade em algum negócio. “Ela falava exatamente o que eu precisava ouvir e, sem perceber, comecei a fazer tudo o que pedia. Cheguei a gastar 80 000 reais para passar cinco dias na casa dela, a pretexto de montarmos uma empresa”, lembra uma advogada de São Paulo, de 32 anos, que pediu anonimato. Já a mineira Jamila Torres, 33 anos, conta que, depois de inúmeras “consultas”, também foi morar com Kat, convidada a dar aulas de ioga às clientes dela. “Fui induzida a ir a um clube de stripper e como não aceitei trabalhar lá, fui usada como doméstica da casa. Durante 42 dias, passei por situações humilhantes. Saí com a ajuda de um ex-namorado”, descreve Jamila, radicada em Boston.
A história de Katiuscia, que se diz guiada por uma entidade chamada A Voz, ganhou notoriedade após o sumiço de duas jovens que aceitaram o convite para morar em sua casa. Os pais e amigos de Letícia Maia, 21, e Desirrê Freitas, 26, foram às redes pedir ajuda para achá-las. As duas então gravaram vídeos dizendo estar bem. Letícia apareceu inclusive em uma live no Instagram, onde se irritou com os pedidos das pessoas que assistiam, entre elas a modelo Yasmin Brunet, para mostrar o local em que se encontrava. Sobrou para Yasmin: as três a acusaram de tráfico humano, ao que a modelo respondeu com um boletim de ocorrência por calúnia e difamação. “Essa mulher fez uma lavagem cerebral na minha filha, uma menina amorosa e trabalhadora”, afirma Elenize, mãe de Letícia. As buscas depararam com perfis das duas jovens em um site de encontros pagos. Elas assinaram acordos de deportação voluntária e têm 120 dias para retornar ao país.
Embora ostentasse uma vida glamorosa e cobrasse entre 5 000 e 10 000 dólares por serviços de bruxaria e banhos miraculosos, a golpista, nascida em uma família humilde de Belém, dava sinais de falta de dinheiro, pedindo transferências para sua conta com histórias desconexas, como a que fora sequestrada por russos. O advogado de Kat, Rodrigo Menezes, afirma que as acusações são infundadas — segundo o defensor, ela é “declaradamente bruxa, o que tem de ser respeitado” — e diz que solicitou à Justiça apoio psicológico. Além de ao menos quinze denúncias criminais no MPF, Kat A Luz enfrenta uma acusação na esfera civil, quatro em delegacias e uma sexta nos Estados Unidos. Vai ser preciso um feitiço bravo para se livrar de uma condenação.
Publicado em VEJA de 14 de dezembro de 2022, edição nº 2819