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Devassa na história: as revelações sobre a imperatriz romana Messalina

Ao descolar dela a imagem de mulher depravada, pesquisadora britânica mostra a relevância de fugir do preconceito e do lugar-comum

Por Alessandro Giannini Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 31 Maio 2025, 08h00

O nome Messalina, sinônimo quase universal de devassidão, remonta ao Império Romano. Ela foi a terceira esposa do imperador Cláudio, conhecido por expandir domínios na África e anexar a Grã-Bretanha. A má fama da imperatriz tornou-se tão repetida que seu nome virou adjetivo, carimbo pejorativo em várias línguas, incluindo o português, a ponto de batizar até motéis. Mas por que a história a julgou com tanto rigor, enquanto tiranos como seus parentes Calígula, que nomeou o cavalo Incitatus senador, ou Nero, incendiário de Roma, são lembrados pela política, em tons de crueldade, mas não pelo comportamento?

A historiadora britânica Honor Cargill-Martin ilumina essa questão no recém-lançado Messalina: a Vida da Mulher Mais Escandalosa da Roma Antiga (Crítica/Planeta). Doutoranda em Oxford, especialista nos humores da Roma Antiga, a pesquisadora investigou como acusações de depravação eram usadas contra mulheres da elite imperial. Messalina emergiu como o caso mais emblemático dessa prática. No entanto, ao analisar uma coleção de fontes primárias, a autora notou uma evidente dissonância entre a caricatura lasciva perpetuada até o nosso tempo e o real dia a dia da interessante figura de carne e osso.

MANIPULADORA - A atriz María Félix no papel da monarca: sexualizada
MANIPULADORA - A atriz María Félix no papel da monarca: sexualizada (Everett Collection/Fotoarena/.)

Na verdade, Messalina desempenhou um papel oficial, dentro das administrações masculinas. Era ouvida, tinha influência. Intervinha em julgamentos e favorecia aliados. Alimentava chantagens e manipulações. Nesse aspecto, o das intrigas palacianas, fazia parte do evidente jogo sujo. A reconstrução de sua vida pública e privada, contudo, é um desafio, dada a natureza dos relatos deixados pelos historiadores Tácito, Suetônio e Dião Cássio — quase todos escritos décadas depois da morte dela, e de evidente olhar machista. Os textos são a base do que sabemos, mas interpretar as motivações por trás dos eventos é complexo. “É um processo constante de tentar descobrir em quais partes confiar, o que questionar ou deixar de lado”, diz Cargill-Martin.

De fato, estudar mulheres em Roma é desafiador, pois elas geralmente só ganharam notoriedade quando suas vidas de cruzaram com a de homens poderosos. Agripina, a mãe de Nero, era atacada por ser percebida como “masculina”, por invadir um espaço considerado impróprio. Messalina, ao contrário, era desqualificada por ser “muito boba, frívola, mulher apaixonada”. Essa distinção é reveladora: o poder de Agripina era visto como perigoso por mimetizar o masculino; o de Messalina era invalidado por meio de atributos “femininos” e “descontrolados”, manifestos na esfera sexual — em tom que ainda ecoa, tristemente, e pede urgente revisão, como faz agora Cargill-Martin.

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Divulgação
Messalina,  de Honor Cargill-Martin (tradução de Ana Maria Fiorini; Crítica; 384 páginas; R$ 99,90; R$ 59,90, em e-book) (//Divulgação)

Embora os rótulos atrelados a Messalina persistam, a pesquisadora não nutre a ilusão de que seu livro vá alterar o curso da linguagem popular. O valor de sua pesquisa reside na conscientização sobre como e por que a imagem foi construída. Seu trabalho é um convite a lembrar que, por trás da palavra e do mito, existiu um indivíduo histórico. “Uma pessoa que viveu uma vida muito mais complexa, longe de ser o ideal angélico perfeito”, diz Cargill-Martin. “Foi uma mulher de enorme impacto em sua época.”

@hcargillmartin
SENSATEZ - A autora Cargill-Martin: “Longe do ideal angélico perfeito” (Reprodução/Instagram)
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Não se trata, portanto, de negar que Messalina tenha tido amantes ou gostado de sexo. A própria autora admite que a insistência dos rumores e o fato de todas as fontes a atacarem nessa frente sugerem alguma base factual. A questão crucial é mostrar outras camadas que a tornam uma pessoa muito mais complexa em uma teia intrincada. A cultura, embebida de filmes e livros, ajudou a construir a discriminação e o exagero do lugar-comum. Retratada em filmes como Messalina, a Imperatriz do Vício e do Pecado (1951), no qual foi interpretada pela atriz mexicana María Félix, deu-se a explosão de uma figura ladina e melíflua. Trata-se, enfim, de celebração indevida da misoginia. O ponto: era narrativa quase sempre aceita pela sociedade, impondo às mulheres posição secundária. Os novos tempos mudaram o tom da prosa, e desconstruir o que se imaginava a respeito de Messalina é um modo de conversar com uma época de defesa da diversidade.

Longe de ser um mero conto moral, percorrer a trajetória de Messalina é um modo de defender uma ideia fundamental: é sempre bom estar atento a certezas históricas que soam como regra, especialmente no olhar retroativo da posição das mulheres. Messalina, enfim, era uma mulher de verdade, mas não como a Amélia, de Mário Lago, que “não tinha a menor vaidade”, da linda canção de 1942, atrelada a um tempo de percepções equivocadas. Cabe agora reconstruir o passado como caminho para tornar o futuro mais justo.

Publicado em VEJA de 30 de maio de 2025, edição nº 2946

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