Cultura do castigo físico na criação dos filhos segue arraigada no Brasil
Nova pesquisa indica a permanência de uma prática vai na contramão da ciência e produz estragos perenes
Até o século XVIII, não havia a noção de infância, algo que a pintura mostra com pinceladas certeiras, ao retratar crianças com feições adultas ao longo dos tempos. Um marco essencial para o aparecimento da ideia de uma fase da existência em que os indivíduos demandam cuidados adicionais foi o advento de instituições de ensino na Europa, onde as pessoas começaram a ser separadas por faixa etária. Daí vieram desdobramentos em muitos departamentos, destinando ao pequeno ser em formação atenção voltada para as necessidades inerentes à pouca idade — da alimentação à filosofia no modo de criá-lo. Em meio ao vendaval provocado no pensamento ocidental pelo Iluminismo, Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) foi a primeira influente figura a derramar luz sobre uma excrescência que tinha então contornos de normalidade: a regra à época era educar filhos na base do castigo físico, o que o filósofo francês tratou de denunciar. Ele também sugeriu uma linha pedagógica com forte pendor à liberdade, cujo objetivo deveria ser estimular os indivíduos a agirem por interesses naturais, e não por imposição.
Era tudo muito moderno e só aos poucos foi sendo digerido, até que, nas últimas décadas, um conjunto de países baniu o mau hábito de punir a prole com palmadas e outros gestos calcados na violência.
Umas nações avançaram mais rapidamente nesse campo do que o Brasil, onde ainda circula a crença de que a rigidez produz bons resultados — um ideário em que a estratégia das penalidades físicas continua a ser não apenas tolerada, como incentivada, mesmo sem eco na ciência.
Os novos ventos educacionais, com muita gente qualificada defendendo a eficácia do bom diálogo, ajudaram a retirar o bolor de antigas convicções, mas não foram suficientes até agora para virar completamente a página. De acordo com um recente levantamento sobre o tema conduzido pela Fundação José Luiz Egydio Setúbal e pelo Instituto Galo da Manhã, com apoio técnico da Ipsos e da Vital Strategies, uma ONG de projeção internacional, 52% dos pais brasileiros reconhecem já ter apelado para tapas e afins quando o conflito aperta com a criançada. Um grupo de 25% diz claramente considerar tal conduta aceitável, enquanto o restante recorreu a ela num momento em que, no calor da discussão, não viu outro caminho. Um equívoco, segundo especialistas, que defendem a demarcação de limites, mas sempre com conversa. “Evidentemente que os pais precisam promover uma criação que prepare o jovem para receber nãos e lidar com a realidade. Para isso, no entanto, devem ser firmes sem recorrer a métodos coercitivos”, enfatiza a psicóloga Ciomara Schneider, da Universidade de Brasília. Desse modo, está provado, a criança conseguirá expressar-se sem medo, o que é fundamental para seu pleno desenvolvimento.
Tapas, beliscões, empurrões — tudo isso deixa sua marca em um horizonte dilatado, ainda que os pais sejam impulsionados pela melhor das intenções. O mesmo estudo revela que quem vivenciou agressões em casa nos primórdios da vida tende a concordar duas vezes mais com a prática. Também há, porém, aqueles que, com a memória tatuada por tais episódios, percorrem justamente a trilha oposta, fugindo a todo custo da violência. Apesar de ter sofrido diversas formas de castigos físicos quando pequena, a gerente comercial Paula Bueno, 37 anos, selou um compromisso consigo mesma de que nunca levantaria a mão para a filha Sofia, hoje com 11. “Até hoje minha mãe acha que eu deveria bater para educar. Ela não via aquilo como uma violência”, conta Paula, que avalia colher confiança e respeito com seu método, ainda que não raro exija excessivas doses de paciência. “Na idade da minha filha, o que eu sentia era medo e insegurança”, desabafa.
O candente debate aterrissou no Brasil depois de atiçar as labaredas em muitos países. Foi apenas com a promulgação da Constituição de 1988 que menores de idade passaram a ser considerados indivíduos dignos de direitos — e “a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”, conforme dizia o texto. Dois anos mais tarde seria concebido o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que inaugurou todo um novo entendimento sobre a infância. Em 2014, o governo federal enfim sancionou a Lei da Palmada, que proíbe o emprego de qualquer espécie de castigo físico em crianças, embora não estipule penas, que variam de um caso para outro. Ocorreu com quatro décadas de atraso em relação à precursora Suécia, que logo seria acompanhada por Finlândia e Noruega, o que se explica historicamente. “Durante a colonização, crianças escravizadas eram postas a trabalhar, como se fossem miniaturas dos adultos, e isso deixou suas sequelas. Até uns trinta anos atrás não havia no país sensibilidade para entender o que significa essa fase inicial da vida”, explica Lucas Lopes, da Coalizão Brasileira pelo Fim da Violência contra Crianças e Adolescentes.
Atualmente, já são mais de cinquenta as nações onde a legislação barra a aplicação de “corretivos” nos filhos. Quando a medida é abraçada de maneira radical, os resultados são palpáveis e perenes. Um levantamento da Universidade McGill, no Canadá, apontou que em sociedades onde o castigo corporal foi inteiramente varrido do mapa, tanto em casa quanto na escola, registrou-se um declínio de 31% das brigas físicas entre jovens do sexo masculino e de 42% na ala feminina. No Brasil, apesar da lei, a prática é perpetuada por uma parcela das famílias que, na imensa maioria das vezes, acredita que tal castigo é para o bem da criança. Contribui o fato de pairar um silêncio sobre o assunto, que é mesmo difícil de cutucar, visto que se trata de algo de fundo essencialmente pessoal. Na nova pesquisa, 64% dos brasileiros entrevistados admitem que, para não meter a colher num caldo que não lhes diz respeito, não tomariam nenhuma atitude ao assistir a uma criança sendo punida na base da surra.
Após muita investigação, a neurociência reuniu vastas evidências de que a violência sofrida na infância, mesmo a mais branda, aparentemente inofensiva, deixa marcas que podem se refletir no desenrolar da vida. Pois é justamente na etapa inicial que são moldadas as estruturas cerebrais, momento em que a mente funciona como uma esponja a absorver os estímulos em volta. “Na hora em que a criança apanha, o cérebro entra em estado de alerta e aumenta a secreção de cortisol, um hormônio de efeito tóxico”, explica o neurologista Mauro Muszkat, da Unifesp. “Com a recorrência dessa situação, a pessoa vai se tornando insensível e mais propensa a reproduzir comportamentos agressivos”, diz.
Uma ampla investigação sobre o tema, conduzida pela Universidade do Texas e recém-publicada na prestigiada revista científica The Lancet, mergulhou no universo de jovens mundo afora — americanos, canadenses, chineses, colombianos e japoneses, entre outros. Conclusão: os que receberam punições físicas quando pequenos apresentavam mais gargalos cognitivos e problemas de socialização. “Em geral, os pais batem nos filhos achando que isso os fará parar para pensar e melhorar o comportamento, mas está provado que só piora”, resume Elizabeth Gershoff, estudiosa do desenvolvimento humano e autora do estudo.
É verdade que, no ápice do conflito, sobretudo quando a criança vai aprendendo a desafiar os pais, não é fácil manter o diálogo em saudável e produtivo tom. Exige-se aí elevado grau de paciência, algo que o administrador André Torres, 40 anos, tenta semear ao lado do filho Luca, de 9. Ele admite que, no passado, recorreu à palmada em uma hora de tensão. Arrependeu-se. “Não é fácil. O dia a dia dos pais é muito corrido e estressante, e acabei descontando no Luca. No mesmo instante, percebi sua expressão de decepção”, lembra ele, que pediu desculpas. “É importante mostrar que também erro, externando o que penso”, reflete. Se a ideia de dar aquele beliscão é fazer a criança despertar e crescer, o efeito costuma ser exatamente o oposto. “Receber um tapa pode desencadear uma quebra de confiança e produzir insegurança, distanciando os filhos dos pais”, alerta Maria Fernanda Peres, professora de medicina preventiva da USP. Dito isso, restam as palavras nesta aventura que é criar filhos para a vida.
Publicado em VEJA de 12 de janeiro de 2024, edição nº 2875