Como um restaurante em São Paulo preserva uma antiga tradição gastronômica
O Shakshuka, em Perdizes, tem menu baseado em receitas típicas da população judaica da Líbia, forçada a sair do país
Há pouco mais de 20 anos, a longa história da população judaica na Líbia chegou ao fim. Em 2003, Rina Debach, então com 80 anos, foi a última a deixar o país. Nascida e criada em Trípoli, perdeu o contato com seus parentes na Itália. Identificada vivendo em uma casa de repouso, foi levada pela família para Roma. A situação dos judeus remanescentes no país já era complicada. Embora tenham vivido durante séculos na região, ao menos desde o quarto século antes da Era Comum, leis implementadas pelos italianos na época da Segunda Guerra provocaram perseguições. Depois do fim do conflito, a insegurança se manteve e muitos optaram por mudar para outros lugares, principalmente para Israel, fundado em 1948. Quando Muammar Gaddafi (1942-2011) assumiu o poder, em 1969, a população judaica era de cerca de 100 pessoas, e diminui gradativamente. Com isso, tradições locais, como a rica gastronomia, se mantiveram graças à memória dos imigrantes.
O restaurante Shakshuka, em São Paulo, é um reduto dessa culinária que já não existe mais em seu local de origem. A ideia veio de Keren Ora Admoni Karman, uma das proprietárias. A proposta é oferecer receitas de sua mãe, Yaffa Admoni, adaptadas com talento pela chef e sócia Erika Kaiser Mori. Funcionava como café dentro do Centro da Terra, espaço cultural em Perdizes, há anos. Mas tornou-se restaurante agora, aberto para o almoço e o jantar, sem paradas, de segunda a sexta.
Como o nome já deixa claro, o destaque do menu é o shakshuka, ovos escalfados em molho de tomate condimentado, servido em algumas variações. Algumas levam a mistura de temperos filfeltchuma (ou Pilpelchuma, como também é conhecida), típica da Líbia. Como o garam masala indiano, cada família tem sua própria receita. O elemento em comum é a pimenta, que dá um toque vibrante à mistura. “A nossa versão é menos picante. A Yaffa provou todas as receitas e disse que faltava pimenta, mas tivemos que adaptar para o paladar do brasileiro”, conta Erika. Há uma opção mais simples, Tripoli, servida com espinafre, interessante para entender a base da cozinha líbia, e versões criativas, como a Magreb, com berinjela defumada (que remete a babaganoush), amêndoas e coentro.
Há outros pratos típicos, como o Hraime Tuna, com pedaços de atum servidos sobre um molho de tomate condimentado com conserva de limão siciliano, que dá um toque de frescor, e a versão vegetariana, Hraime Asseda, com uma massa de semolina que parece um enorme nhoque. A chef Erika Mori deu seu toque pessoal ao menu. Ela serve pörkölt, uma versão do guisado goulash, servido sobre a massa conhecida como spätzle – uma homenagem a sua ascendência húngara. Agora, com a temperatura mais baixa, a casa serve a sopa Harira, tradicional na região do Magreb. Há ainda clássicos do Oriente Médio, como o saboroso falafel, servido em um formato redondo.
De sobremesa, as boas pedidas são a babka, doce tradicional dos judeus do leste europeu, e a Selek, feita com coalhada de ovelha, maçã, beterraba, telha de suspiro e um crocante de avelã e especiarias chamado dukah, muito comum no Oriente Médio. A Selek é especialmente surpreendente. Nasceu como salada, durante as pesquisas e testes da chef Erika, mas tornou-se sobremesa, e deu muito certo.
Mais do que uma oportunidade de provar uma antiga tradição gastronômica, preservada com carinho, trata-se de uma chance de vê-la atualizada, servida de forma reconfortante em um ambiente aconchegante.
Vale a pena ainda ver a programação cultural, com exibições de filmes nacionais, shows musicais e performance de dança.