Como as mulheres estão tirando das sombras o delicado tema da traição
Emancipadas, elas colocam em prática um movimento que estimula relações mais verdadeiras
A infidelidade na relação de um casal é tema universalmente espinhoso. Atravessa os séculos com suas diferentes perspectivas históricas, mas é sempre posto sob um tecido delicado, muitas vezes dolorido e imerso em ressentimento. Esse terreno repleto de ondulações não costuma ser fácil para ninguém, mas um mergulho no tempo mostra que, para as mulheres, esgarçar laços amorosos estabelecidos, ou mesmo cogitar fazê-lo sem consumar a traição, tem sido mais penoso.
É um ato em muitos casos cercado de imensa culpa, que pode se desdobrar em castigos absurdos e cruéis. A punição para as adúlteras no Império Bizantino era a venda delas em praça pública. Na Europa medieval, aquelas flagradas em relações extraconjugais tinham o rosto desfigurado, com parte do nariz, orelhas e lábios arrancados. Até nos tempos atuais, o que é entendido como quebra imperdoável do contrato conjugal leva à castração e à retirada do útero em certas regiões da África.
Ainda hoje, na balança dos julgamentos, o peso incide mais sobre elas. Contudo, é postura que está começando a mudar. Nas novíssimas relações em sociedade, pôr as cartas na mesa, embora traga sofrimento, também deságua em relações mais verdadeiras. O assunto, que normalmente ficava trancafiado no armário dos tabus intocados, passa a sair dele. E as mulheres, sendo protagonistas ou alvo da traição, já cutucam e expõem a ferida, sem a vergonha que as assombrava antes — bem mais, aliás, do que os homens, que na transgressão matrimonial viam (ou veem) reforçados atributos da masculinidade.
Especialistas ouvidos por VEJA reconhecem que, depois de décadas de luta pela própria emancipação, tendo fincado firme os pés em vários setores da vida, elas tiram as infidelidades da zona silenciosa em que estavam justamente por se sentirem mais livres para assumir seus desejos e ir em busca da satisfação. “Se no passado a questão da traição era tratada como algo indizível, hoje é encarada com menos receio e discutida nos relacionamentos”, afirma a psiquiatra Carmita Abdo, coordenadora do Programa de Estudos em Sexualidade da USP.
Um novo levantamento conduzido pelo site de relacionamentos extraconjugais Ashley Madison, o maior do gênero, cavucou dados valiosos acerca de tão pedregoso debate. Ele mostra que os brasileiros são vice-campeões em números de inscritos em um rol de 52 países, atrás apenas dos americanos (leia o quadro). As principais molas para a pulada de cerca confirmam o que é de senso comum: “tédio” e “a vontade de experimentar algo novo” são as justificativas de 71% dos 13 milhões de frequentadores daqui do aplicativo. E eis que, na contagem entre brasileiros e brasileiras, chama a atenção elas serem o dobro deles.
Mas que fique claro: isso não significa, necessariamente, que estão traindo muito mais que os homens, já que podem só estar flertando com a ideia. É um sinal, porém, de que o tema anda presente na ala feminina. Também indica que está caindo por terra o velho pensamento segundo o qual as escapulidas são uma espécie de direito masculino, vinculado à sua incontornável natureza sexual — mito que se exacerba em sociedades de forte caldo machista e patriarcal. “Num contexto em que as mulheres prezam cada vez mais a igualdade na relação, a traição deixou de ser um privilégio, digamos, deles”, observa a antropóloga Mirian Goldenberg.
Depoimentos colhidos por VEJA revelam as ambiguidades envolvidas nas infidelidades. A ex-modelo Luma de Oliveira, 57 anos, assume sem rodeios que “traiu, sim, e várias vezes” na juventude, mas ressalta que não tem orgulho disso, nem tampouco de ter estado do outro lado da ciranda. “Eu era imatura, impulsiva. Não fui fiel e, quando traída, me senti diminuída”, admite ela, que, após treze anos de casamento com o empresário Eike Batista, a quem diz ter sido 100% fiel, conta hoje preferir namoros curtos e intensos. A caça por emoções é a força motriz de muitas traições. É o que admitiu a atriz Deborah Secco, 42 anos. Ela afirmou ter sido infiel com todos os namorados, com exceção do marido. “Não trabalho com hipocrisia e sou feliz por ser uma pessoa liberta”, enfatizou, e foi alvejada (leia no quadro).
A percepção sobre o adultério (que vem da expressão em latim ad alterum torum, a cama do outro, em bom português) feminino foi aos poucos se transformando junto com reviravoltas que deram à mulher um lugar no mercado de trabalho, a partir da Revolução Industrial, no século XVIII. Depois, vieram a pílula anticoncepcional e a conquista de direitos fundamentais desde a década de 60. “As mulheres estão completamente inseridas, e uma eventual infidelidade por parte delas não tem mais o peso do passado”, diz a psicóloga Denise Figueiredo, autora do livro Vamos Falar sobre Traição. Nos dias de hoje, e isso vale para eles e elas, o mundo virtual facilita o ato.
Ao ingressar em sites como o Ashley Madison, a pessoa informa nome, estado civil e relacionamento que pretende — sexo virtual, encontro casual ou namoro — e adiciona uma foto, que pode conter efeitos gráficos para dificultar a identificação. “As usuárias relatam que são motivadas por sentimentos de empoderamento, de assumir o controle de sua felicidade”, comenta Isabella Mise, diretora de comunicações da plataforma. Atualmente colocado sobre bases mais arejadas e transparentes, o dilema da traição acaba desembocando nas conversas sobre o casamento tradicional. Como fica evidente na pesquisa do Ashley Madison, ter um caso frequentemente não é sinônimo de estar de todo infeliz com o parceiro nem que um rompimento desponta no horizonte. “Uma relação sadia e longeva é baseada na realidade, e não na idealização, e todos os assuntos, inclusive a traição, precisam ser lançados à discussão”, sustenta o terapeuta de casal Matheus Vieira.
Sobretudo entre as novas gerações, com sua visão menos enraizada em padrões preestabelecidos, a traição, mesmo doída, é vista cada vez menos como uma sentença de fim do amor. O ideal romântico, o da cara-metade, vai cedendo espaço a enlaces mais francos e realistas. Após experimentar namoros turbulentos, em que infidelidades de ambas as partes provocaram angústia e tristeza, a atriz Paula Frascari, 37 anos, adotou um comportamento diferente. “Apesar de estar hoje numa relação fechada, acredito que é possível amar e desejar outros. Acho difícil manter um relacionamento longo sem ficar com mais ninguém”, assume. Traição nunca deixará de ser objeto de incômodo que às vezes rasga o peito nem de debates que atiçam as labaredas. O fato é que as mulheres estão encabeçando um essencial movimento de tirá-la, de uma vez por todas, das sombras.
Publicado em VEJA de 20 de julho de 2022, edição nº 2798