Biografias recuperam peso histórico dos intelectuais negros contra racismo
Eles foram essenciais na luta contra a escravidão
Nos livros de história, o dia 13 de maio de 1888 ficou marcado como a data em que a princesa Isabel assinou a Lei Áurea e colocou fim a um período de mais de 300 anos de escravidão no Brasil. A narrativa oficial diz que, na ausência do imperador D. Pedro II, ela cedeu à pressão para que o país se tornasse o último do Ocidente a deixar para trás o legado de crueldade e horror. Pouco se menciona, no entanto, a importância que tiveram os intelectuais negros, próximos e distantes da corte, na organização popular que levou à assinatura do documento. A reboque de um movimento que combina reconhecimento e reabilitação, esses personagens e suas obras começam a ser resgatados pelo mercado editorial, em busca de fazer valer uma almejada diversidade.
Os livros O Engenheiro Abolicionista (Chão), organizado pela historiadora Hebe Mattos, e Luiz Gama contra o Império (Contracorrente), escrito pelo advogado Bruno Rodrigues de Lima, fazem esse trabalho de maneira formidável. O primeiro reabilita a figura de André Rebouças (1838-1898) como engenheiro, abolicionista e defensor da imigração. O outro reposiciona Luiz Gama (1830-1882), um advogado autodidata que comprou sua liberdade e defendeu outros escravizados, como uma referência do mundo jurídico e um importante pensador da democracia e da República.
A história oficial restringiu os negros à vivência de escravidão e apagou toda a sua experiência de liberdade. “É muito forte o imaginário de que a princesa um dia acordou de bom humor e decidiu acabar com a escravidão, invisibilizando o movimento abolicionista e a luta dos negros”, afirma a autora Hebe Mattos. No caso de Luiz Gama, isso é ainda mais gritante, já que ele foi um pensador que ensejou ideias de democracia e igualdade social que são profundamente atuais. “Gama enfrentou problemas complexos e inéditos e deu respostas originais a essas questões”, diz o biógrafo Bruno Lima.
Em um país que ignora a lei que obriga o ensino da história e da cultura afro-brasileiras na educação básica, a popularização e divulgação desses personagens é mais do que necessária. O resgate histórico acompanha também o renascimento de obras como Homem Invisível (José Olympio), de Ralph Ellison, A Rua (Carambaia), de Ann Petry, e, mais recentemente, Filho Nativo (Companhia das Letras), escrito pelo americano Richard Wright. Por meio da ficção e de relatos factuais, essas jornadas têm o poder de sensibilizar o leitor e aproximar realidades aparentemente distintas, mas que compartilham a crueldade deixada pela herança escravocrata. “A partir do intercâmbio de ideias, nós conseguimos diluir as diferenças entre as relações raciais e produzir uma imaginação literária da realidade negra”, diz o historiador Fernando Baldraia, editor de diversidade da Companhia das Letras.
Durante a segunda metade do século XX, muitos desses autores foram traduzidos e publicados, ao mesmo tempo que houve uma ebulição de intelectuais negros no Brasil, como Beatriz Nascimento, Lélia Gonzales e Abdias do Nascimento, que questionaram o mito da democracia racial e demandaram justiça pelo legado racista deixado na nossa história. Agora, potencializadas pelo movimento global Vidas Negras Importam, essas reivindicações ganham novo e bem-vindo fôlego.
Há muita estrada pela frente. Apesar dos avanços, marcados pela revisão da história, o mercado editorial ainda é pouco diverso, fazendo com que, muitas vezes, empresas surfem o movimento do antirracismo, mas relegando pessoas negras ao lugar de objeto de estudo e não de protagonista. Uma consequência disso é o espaço, ainda restrito, reservado aos autores pretos. De todo modo, é fato que há um interesse mais aguçado para a literatura de autoria negra. “Diante do que era um descaso total, a mudança é grande, mas basta ir a uma livraria para verificar que ainda existe uma desigualdade entre quem consegue publicar no Brasil”, diz Vagner Amaro, fundador da editora Malê. “A importância de se reafirmar a intelectualidade negra se mantém.” Durante muito tempo, os intelectuais negros lutaram para se fazer ouvir, criando as suas próprias editoras ou organizando feiras especializadas. Até agora, esse esforço demonstrou ser insuficiente. Um passo importante está no reconhecimento do legado deixado por grandes personalidades que ajudaram a construir a história do Brasil. Mas é preciso fazer mais. O racismo, afinal, não está superado no país.
Publicado em VEJA de 2 de agosto de 2024, edição nº 2904