Araras virtuais: marcas investem em provadores de roupas com recurso de IA
Trata-se de alternativa para quem não quer (ou não pode) vestir as peças antes de comprá-las

Criado pelo químico alemão Justus von Liebig (1803-1873), o processo de prateamento que seria a base da fabricação moderna de espelhos representou uma revolução no mundo da beleza, tornando real uma possibilidade que os irmãos Grimm intuíram na vaidade da bruxa má da Branca de Neve: “espelho, espelho meu”. E, então, postar-se diante da peça quase sempre retangular, vendo a si mesmo na intimidade de um provador de roupas, entrou em voga para nunca mais sair. Nas palavras da estilista italiana Miuccia Prada, “moda é mensagem instantânea”.
Contudo, em movimento que soa irrefreável e atualíssimo, testar o look no espelho tende a ser página virada. Muitas lojas começam a introduzir o chamado provador virtual (try on, em inglês), que usa inteligência artificial (IA), como não poderia deixar de ser. Nos Estados Unidos, redes como H&M, Loft e Everlane aprimoram o recurso, introduzido há dois anos. No Brasil, a marca de moda masculina Aramis estendeu a brincadeira, que já adotava no e-commerce, para a loja física, inaugurada em dezembro no MorumbiShopping, em São Paulo. É um espaço amplo, com decoração clean, de 120 metros quadrados, com jeitão de futuro — e dá-lhe a experiência bem mais impactante do que a oferecida pela selfie dos smartphones. “A inauguração é estratégica”, diz Richard Stad, CEO da Aramis. Faz parte do projeto de expansão e rejuvenescimento da confecção, que já conta com 120 pontos de vendas espalhados pelo país e quer chegar a 1 bilhão de reais de faturamento até 2026.
De modo geral, a tecnologia, que parece extraída de um filme da franquia Harry Potter, é sempre a mesma. O programa captura a imagem do cliente e escaneia suas medidas. Depois cruza a informação e a foto dele com as da coleção da marca, que foram salvas em um banco de dados. O comprador, apresentado a diferentes modelos, tamanhos e cores, faz sua escolha e, bingo!, eis o produto adequado, visto como se fosse real. O aprimoramento da invenção, que parecia ter sido engolida por dificuldades técnicas, até que a IA surgisse, soa como solução para um leque de problemas, a começar pela dificuldade de oferecer, no comércio eletrônico, a necessária acuidade e precisão.
Comprar em sites, sabemos todos, é complicado. Há o caimento, as dimensões e um imenso etc. Não por acaso, as trocas das compras on-line giram em torno de 20%, o dobro da taxa do mercado de endereços físicos. Pesquisas recentes mostram que seis em cada dez consumidores consideram a dificuldade de acertar a seleção remota, pela internet, a pior parte da experiência de compra. É realmente desanimadora a aventura irritante de efetuar a devolução, ir aos correios e depois de um tempo escolher outro artigo. As marcas também perdem dinheiro com o processo, que pode custar até 70% da venda.

A nova tecnologia do “espelho” virtual, se adaptada tanto às lojas físicas quanto aos canais de vendas pela internet e vier a proporcionar maior confiança, digamos, estética, pode marcar o início de um novo tempo. Gigantes como o Google e a Cisco trabalham com ferramentas nesse caminho e prometem novidades. Parece não haver limites, e logo os armários domésticos terão cabides de compras exclusivamente eletrônicas.
Há um outro aspecto muito interessante da inovação e que não deve ser desdenhado, por dar as mãos para os atuais humores da humanidade, ao menos em porções do planeta de postura conservadora e muitas vezes misógina. O provador virtual da Aramis, desenvolvido pela empresa brasileira Doris, foi adotado na Arábia Saudita e rapidamente entrou nas casas mais ricas. “Como as mulheres são proibidas de experimentar roupas em lojas, a tecnologia representa uma solução”, diz o CEO da Doris, Marcos de Moraes. É contra a lei as sauditas se despirem em ambiente público, mesmo que seja em local reservado. O avanço, portanto, virou personagem da sociedade, um conforto feminino necessário — ao menos enquanto a norma patriarcal não muda, e cedo não mudará — e sinônimo de dólares em caixa, com a expansão dos negócios.
Por trás de um espelho eletrônico, ao lado das araras ou no closet do lar, a IA começa a entregar, com pompa e circunstância, uma novidade positiva. Faz sucesso, ainda hoje, um filme de sessão da tarde, por aqui batizado com o esquisito nome As Branquelas, de 2004, em torno das desventuras de dois irmãos que trabalham no FBI, selecionados para escoltar duas dondocas. As cenas em trocadores de roupa são as mais engraçadas e as mais comentadas, misto de crítica com realidade daquele cantinho escondido. Elas estão com os dias contados. Não desaparecerão, é claro, mas talvez venham a ser lembradas como uma ideia do tempo da Branca de Neve, um conto de carochinha.
Publicado em VEJA de 10 de janeiro de 2025, edição nº 2926