A importância da resiliência em um mundo assombrado por guerra e pandemia
Ela torna-se a habilidade emocional indispensável para impedir que corpo e mente desmoronem
Em determinado trecho de Guerra e Paz, o clássico do escritor russo Liev Tolstói, Pierre Bezúkhov — o personagem principal da monumental história passada em meio à invasão da Rússia em 1812 pelas tropas francesas de Napoleão — faz uma reflexão pungente. Bezúkhov, filho ilegítimo de um conde e apresentado como um jovem idealista imerso numa jornada em busca da essência do espírito, é obrigado a amadurecer em meio à realidade bruta da guerra e das relações humanas descritas magistralmente por Tolstói. Depois de ter sido preso pelos franceses e testemunhado as atrocidades cometidas pelas tropas napoleônicas, o personagem resume o que leva da experiência. “Eles dizem: sofrimentos são infortúnios. Mas se neste minuto eu fosse perguntado se eu permaneceria como era antes de ter sido pego como prisioneiro, ou se passaria por tudo novamente, eu diria, pelo amor de Deus, deixem-me ser um prisioneiro e comer carne de cavalo novamente. Nós imaginamos que assim que somos arrancados de nosso caminho habitual tudo acaba, mas é apenas o começo de algo novo e bom. Enquanto houver vida, haverá felicidade. Há muito, muito diante de nós.”
O ensinamento que Tolstói transmite por meio das palavras de Bezúkhov é extraordinário. Ele resume de que forma o ser humano é capaz de manter intacta sua estrutura emocional mesmo quando o mundo desaba ao seu redor. Pode ser em razão de uma guerra, como a que afligiu o personagem Bezúkhov, ou a que agora reduz ao sofrimento milhões de pessoas na Ucrânia atacadas pelas tropas de Putin. Ou de uma pandemia, como na Gripe Espanhola, entre 1918 e 1920, durante a qual, estima-se, 50 milhões de pessoas tenham morrido, ou a de Covid-19, doença que nos últimos dois anos tirou a vida de 6 milhões de indivíduos. Ou, então, o desmoronamento provocado pelas pequenas tragédias pessoais, aquelas sobre as quais não há holofotes, mas que seguem alimentando as dificuldades humanas e das quais praticamente ninguém escapa.
Não importa a origem do sofrimento. O segredo para sobreviver emocionalmente às adversidades da vida está no grau de resiliência de cada um. A palavra é emprestada da física e significa a capacidade que determinado material tem de aguentar pressões e voltar à forma original passado o estresse. Traduzindo para o universo humano, o conceito diz respeito à habilidade de se adaptar a diferentes circunstâncias e manter-se são. “Resiliência é a combinação entre ser apto a se levantar se for preciso e ter treinamento necessário para ser flexível em um mundo incerto como o de hoje, onde não sabemos o que pode acontecer”, define Dorie Clark, da Universidade Duke, nos Estados Unidos. De fato, a capacidade tornou-se a diferença entre quem passa por tudo sem ruir e aqueles que podem nunca mais se erguer diante de mazelas tão desafiadoras quanto as atuais. É preciso ser resiliente em relação às aflições universais, às exigências profissionais, às transformações sociais e às demandas afetivas de uma sociedade em permanente ebulição.
Por se tratar de tema tão decisivo, e tão intimamente ligado à realidade, a resiliência ganhou espaço na ciência comportamental nas últimas quatro décadas. Descobriu-se que a dificuldade de lidar com a complexidade do mundo pode adoecer corpo e mente. Os estudos tomaram fôlego ao mesmo tempo que floresciam as investigações sobre a depressão e a ansiedade, enfermidades psiquiátricas cujas raízes também têm a ver com o jeito de responder a circunstâncias hostis. Desde o início, a pergunta a ser respondida era a seguinte: por que as pessoas reagem de maneira diferente diante de uma mesma situação desfavorável? A explicação possibilitaria identificar de que material são feitos uns e não outros, os que sobrevivem às pressões e os que sofrem.
As respostas começam agora a surgir. A questão central que emerge das informações levantadas é a importância da percepção que cada indivíduo tem dos problemas. O psicólogo americano George Bonanno, coordenador do Laboratório de Perdas, Traumas e Emoções da Universidade Columbia, em Nova York, pesquisa o assunto há 25 anos e, segundo ele, a força da resiliência pode variar de acordo com a classificação dada pela pessoa a determinado acontecimento. É o indivíduo que vai considerar se o evento foi traumático ou, ao contrário, se representou uma oportunidade de aprender e de crescer. “O que aconteceu só será um trauma se o vivenciarmos e nos lembrarmos dele como tal”, diz Bonanno.
É dificílimo fazer o que ele e outros estudiosos do tema sugerem. Contudo, é exatamente assim que agem os mais resilientes. Basta ver os jovens que se casaram em plena pandemia ou em plena guerra na Ucrânia. Também são vários os exemplos de pais e mães que perdem filhos para doenças ou violência e transformam a dor em combustível para promover iniciativas que ajudam comunidades de vítimas de tragédias semelhantes. E o fazem independentemente das condições da própria vida. Ricos ou pobres, esses indivíduos dão ao infortúnio o significado de oportunidade em vez de marcá-lo com o símbolo da amargura.
Mas eles não nascem assim. Descobriu-se, felizmente, que a resiliência não é inata. É possível construí-la ao longo dos anos ou aprendê-la rapidamente, se preciso. “Qualquer pessoa é capaz de usar recursos para enfrentar os problemas”, diz o psiquiatra Alaor Carlos de Oliveira Neto, do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, de São Paulo. O primeiro movimento é prestar atenção nos fatores que influenciam quanto cada um será resiliente. O essencial é criar mecanismos que mudem as reações cognitivas e comportamentais diante de um obstáculo. Há ferramentas psicoterapêuticas eficazes para isso, usadas para ensinar os indivíduos a reclassificar pensamentos negativos, a reagir racionalmente, a dar aos fatos a dimensão correta e a compreender que os contextos mudam. O sofrimento não vai durar para sempre. “As pessoas precisam aprender, ainda, que a maioria dos problemas não foi criada por elas”, diz Emerson Santos, diretor-geral da Escola da Inteligência, organização que atua em 1 000 escolas do país dando aulas de resiliência e inteligência emocional, com mais de 300 000 alunos impactados.
O outro aspecto a ser trabalhado é o social. É possível ensinar desde cedo uma criança a lidar mais adequadamente com situações hostis oferecendo a ela a possibilidade de enxergar algo positivo onde parece haver só escuridão. Um caminho é proporcionar um ambiente familiar afetuoso e seguro, estimulando a capacidade de adaptação a novas circunstâncias. Para os adultos, a resiliência pode ser alimentada em situações que ofereçam a convivência com pessoas acolhedoras, acessíveis e prontas para ajudar, e por meio da sensação de pertencimento. “Toda pessoa que se vê pertencente a um grupo sente-se amparada na luta contra um desafio”, diz o psiquiatra Oliveira Neto.
Ser resiliente é atributo vital para a sobrevivência humana. Se não fosse assim, o mundo estaria ainda pior em questões que exigem a força emocional de todos, como o enfrentamento da Covid-19. No entanto, é graças à resiliência demonstrada em dois anos de pandemia que o brasileiro hoje pode comemorar a suspensão total ou parcial do uso de máscaras em várias cidades do país, feita na hora certa e com o aval da ciência. É coisa para se orgulhar. A resiliência nos fez chegar a um bom porto, e com algum louvor, apesar das perdas. A crise sanitária, a mais dura em um século, é prova de que a sociedade consegue lidar com obstáculos. Tomando por empréstimo as palavras de Pierre Bezúkhov, o personagem de Tolstói, muita gente pensou que, ao sermos arrancados do caminho habitual, tudo acabaria. Mas a resiliência, insista-se, nos faz agora vislumbrar o começo de algo novo e, quem sabe, bom, apesar das guerras.
Colaborou Paula Felix
Publicado em VEJA de 16 de março de 2022, edição nº 2780