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Walcyr Carrasco

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Dinheiro na mão é vendaval

Notas e moedas sumiram de nossas vidas — e ninguém percebeu

Por Walcyr Carrasco Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 3 jun 2024, 17h25 - Publicado em 3 mar 2024, 08h00

Outro dia eu resolvi ir a um restaurante no Rio de Janeiro, localizado em um bairro da Zona Sul, tradicional e elegante. Vesti uma roupa especial para a ocasião, passei um bom perfume, peguei a carteira com meus cartões, apesar de usar mais os virtuais hoje em dia. Empoderado e bem acompanhado, entrei no local, certo de que faria uma deliciosa refeição. Pedi uma mesa para dois. Quando sentamos, o garçom nos trouxe o menu. E perguntou: “Já conhecem o restaurante?”. Respondi: “Não, mas já há algum tempo queria conhecer”. Ele disse : “Só quero adiantar que não trabalhamos com cartões”. Sorri e disse: “Tudo bem, eu faço um Pix”. Aí ele frisou: “Só aceitamos pagamento em cash”. Meu mundo desmoronou. Ele nos acompanhou até a saída. Logo ao lado havia outro restaurante. Entramos. A mesma cena se repetiu. Surpreso, soube que os dois eram do mesmo dono. Questionei como isso era possível nos dias atuais. Há muito tempo não passava por uma situação assim. O segundo garçom explicou que os dois restaurantes eram frequentados por clientes antigos e fiéis, que já conheciam as normas e sempre estavam preparados. Realmente, observei e o restaurante estava longe de parecer vazio. Corremos para um food truck, e nos resolvemos.

“Antes eu sempre tinha um trocado para o restaurante, o táxi, a gorjeta. Hoje, basicamente, pago com celular”

Refleti que de fato eu utilizo cada vez menos dinheiro em papel ou moeda, assim como todos os meus amigos e conhecidos. Antes eu sempre tinha um trocado. Separava o dinheiro do restaurante, do táxi, da gorjeta. Sempre tinha uma bolsinha para as moedas. Hoje, basicamente, eu preciso do meu celular. Carro é por aplicativo, reservas on-line, restaurantes pagos por aproximação do celular. E a gorjeta? O exército de profissionais que dependia de gorjetas dançou, porque ninguém mais anda com dinheiro vivo. A não ser que se dê a gorjeta também no cartão. Mas o mundo avançou tanto na seara digital que, há pouco tempo, na entrada do Aeroporto Santos Dumont, um senhor me estendeu a mão pedindo uma ajuda. Respondi que não tinha dinheiro em mãos. “Aceito Pix”, ele respondeu. Para um amigo que queria um queijo coalho na Praia de Ipanema e estava desprevenido, a vendedora propôs, mostrando um cartão: “Aponta seu celular pra esse QR code que o pagamento vai cair direto na minha conta”. Minha reflexologista anda com uma maquininha de cobrança no próprio celular. Mas dinheiro virou algo simbólico. Obso­leto. Mesmo os grandes bancos se resolvem com cifras digitais. Imagine se todos os correntistas de qualquer banco exigirem, no mesmo dia, retirar tudo em dinheiro. O banco entra em colapso.

As cédulas coloridas, as moedas desenhadas, o cheirinho da grana, tudo isso tornou-se raro. Uma mala cheia de dinheiro vivo hoje em dia é suspeita. No mínimo, vão achar que é propina de político. Ou algum pagamento questionável, que alguém recebe e não declara. Outro dia vi a clássica imagem de Tio Patinhas nadando em dinheiro. Hoje em dia seria impossível. O próprio Tio Patinhas teria seus apps. A canção de Paulinho da Viola intitulada Pecado Capital diz que dinheiro na mão é vendaval na vida de um sonhador. Foi premonitória. O vendaval já passou. Dinheiro na mão? Ninguém tem mais.

Publicado em VEJA de 1º de março de 2024, edição nº 2882

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